Descaminhos

sexta-feira, janeiro 15, 2021

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terça-feira, janeiro 15, 2019

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quarta-feira, janeiro 14, 2015

Os avós dos avós

Assaz mimoso isso de querer prestar contas com os que ainda não nasceram. Nossa pronta disposição a cuidar de nossa descendência, ainda que perfeitamente legítima e, mais do que isso, natural e necessária, não é, em si mesma, mais dignificante que aquela que também têm os símios, as moscas, os capins ou até as leveduras. Se algo de específica e genuinamente humano atravessa nossas ações, decerto não reside no cuidado natural que se tem pelos netos de nossos netos (em cujo nome tantos não hesitam em se mostrar tão amiúde dispostos a matar pais, irmãos e amigos), nem na pose com que se afetam exortações a uma posteridade ainda sem nome, mas sim no cuidado da resposta cada vez mais negligenciada que somos chamados a dar aos avós de nossos avós.

quinta-feira, julho 24, 2014

Dos silêncios criminosos

Repetem-se à exaustão os versos daquele poema de Brecht, desvairada e vaidosamente dedicado às gerações futuras — essa entidade mítica e maximamente vazia em nome da qual o presente pode, sentindo-se integralmente desculpado de toda a sua covardia, hediondez e imundice, sorrir em pose de herói ungido para os flashes da posteridade  —, onde o poeta denuncia os tempos sombrios em que vive, nos quais uma conversa sobre árvores teria se tornado quase um crime por envolver o silêncio a respeito de tantas atrocidades. Sim, é verdade, havia e sempre permanecerá havendo algo de criminoso no nosso silêncio.
Mas que tempos ainda mais sombrios não são esses em que a consciência se afunda calculando imoralmente o incalculável e a opção pelo bem parece indissociável da eleição de um mal menor, em que escolher um lado certo tantas vezes se confunde com escolher a atrocidade de efeitos aparentemente menos abrangentes ou duradouros?  Que tempos ainda mais sombrios não são esses em que criminosamente silenciamos sobre certas barbaridades para não engrossar e legitimar o coro de causas que nossa consciência acredita ainda mais criminosas?
Pouquíssimas exceções à parte — mais objeto de uma hagiografia do que de uma história propriamente dita —, os homens parecem se diferenciar não tanto entre os que silenciam e os que não, mas muito mais entre os que criminosamente silenciam por medo da imprudência e os que criminosamente o fazem por essa tão surpreendente, nefasta e explosiva combinação de esperteza, vaidade e cômoda obtusidade. No fim das contas, tempos realmente sombrios são esses em que tão frequentemente parece que o que resta das escolhas morais é pagar o preço de decidir com que crimes estamos dispostos a sujar as mãos.

quarta-feira, dezembro 25, 2013

und wenn das Herz auch bricht...

Gosto muito da bem-humorada passagem de Chesterton em que, a fim de nos obrigar a reconhecer uma dimensão vertical e sobrenatural nos afetos humanos, o autor nos apresenta um gato esfolado vivo como prova cabal de que conceitos naturalistas não são capazes de descrever de modo honestamente satisfatório diversas experiências extraordinárias que temos ordinariamente. Para o bem e para o mal, é claro. A verticalidade é de mão-dupla. O exemplo negativo, contudo, possui popularmente maior apelo retórico. Amor e ódio também poderiam ter sido citados, mas a confusão que gravita ao redor desses termos é tão grande que facilmente se poderia cair no erro de se crer ter refutado o argumento meramente ao se elencarem explicações que, na verdade, deveriam se referir antes à afeição e à repulsa. No extremo oposto à perversidade sobrenatural, a essa ação concreta e efetiva do mal que atravessa nossa existência, a essa dimensão propriamente demoníaca que jamais se deixará reduzir com honestidade a nuances meramente animais de aversão ou agressividade, poderia se pensar no perdão: esse movimento tão surpreendente e inexplicável que se dá na alma e que jamais se reduz à dinâmica justa das desculpas ou à conveniência do oportunismo de uma economia social, biológica ou mesmo psíquica.
Desde Nietzsche e Freud, muito se escreveu sobre a deformação que a culpa  impõe à nossa compreensão. Contudo, não se chama suficientemente a atenção para o fato de que a culpa é um conceito decalcado, negativo, uma cicatriz às avessas, um baixo-relevo engastado em nós, como aquele rastelo da colônia kafkiana tão impressionantemente nos faz lembrar. Não se chama suficientemente a atenção, enfim, para o fato de que a culpa é apenas um dos aspectos do desejo de perdão.
E se é verdade, por um lado, que a quase sempre insuficiente consciência de nossa própria miséria, e das cretinices que dela se seguem, pode nos encher o coração de um arrependimento paralisante, de um remorso que implora expiação, desejo desesperado de sermos perdoados, é também verdade, por outro, que a quase sempre exagerada consciência da injustiça sofrida, com todas as suas indignidades, pode nos carcomer o coração com um rancor que escoa até os últimos restos de sossego, com uma mágoa furiosa que exige uma reparação impossível, desejo desesperado de perdoar. Nosso egoísmo incontornável complica o quadro tornando-o assimétrico: nossa capacidade de perceber, recordar e amaldiçoar é inevitavelmente maior quando se refere às humilhações sofridas do que às praticadas, de modo que a necessidade de nos libertarmos dos rancores se faz ouvir com muito mais urgência do que aquela de nos libertarmos das culpas.
A dialética do perdão descerra um abismo de gratuidades insondáveis no qual jamais ficamos realmente tranquilos. Os que conseguem ser perdoados estão sempre à beira de serem lançados por sua pusilanimidade num ressentimento rancoroso: ser perdoado pode até aliviar a culpa, mas aumenta vertiginosamente a consciência da própria miséria. Os que conseguem perdoar, por sua vez, ficam sempre à iminência de serem mordidos por um senso de justiça que se regenera junto com suas vaidades. Por mesquinho que seja, e é, e somos, o fato é que aquilo por que todo perdão mais anseia é poder ser simplesmente uma desculpa.

quinta-feira, dezembro 05, 2013

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O tapete do inferno se estira felpudo
com as lembranças que secas se empilham no chão,
com vaidades em montes crescentes que são
o sepulcro de um eu que dizia: 'não mudo'.

As paredes do inferno refletem, contudo,
o reverso real da maldita afeição.
Os diabos que brotam de mim sorrirão;
já não passa o pavor, mas no fundo eu saúdo

o medo de que não nos sobre um triz que acene
lampejos de um momento que se creu feliz;
de que a ansiada paz ao fim também gangrene,

ao que, no azinhavrado de um desejo gris,
desamparada murche a então nada solene
memória amarfanhada do que já se quis.

sábado, março 09, 2013

Notas sobre um cartesianismo popular

Até onde sei, das diferentes versões da história de Barba Azul, seu sombrio castelo cheio de portas fechadas e sua nova esposa, nenhuma delas assume a possibilidade de que, dessa vez, o soturno nobre pudesse realmente se encontrar apaixonado pela jovem que desposava. Não é totalmente claro se ele já o estivera alguma vez outrora, se o estivera pelas esposas que agora assombravam o castelo como cadáveres, e em que medida o teria estado. Os fatos, contudo, tornam essa hipótese pouco promissora.

Embora seja concebível que Barba Azul tivesse sido genuinamente apaixonado por cada uma das esposas que, por esses caminhos esquisitos e tão frequentemente sórdidos das paixões, viera a assassinar, é sem dúvida mais provável, a se levar em conta o destino que as pobres moças tiveram, que elas nunca tivessem representado para ele mais do que o ensejo de vazão de suas pulsões mais violentas, ou meramente de seu tédio desmedido. Talvez fossem um simples ponto de repouso na beleza, fuga desesperada de sua proverbial e provavelmente insuportável feiura. Nós simplesmente não temos como sabê-lo com certeza, mas às vezes, e ousemos dizer que em geral, a aparência mais óbvia tem mesmo um bocado de verdade.
Contudo, creio, há indícios de que dessa vez poderia ter sido realmente diferente. Enquanto, na versão de Perrault, ao viajar, o nobre entrega à nova esposa todas as suas chaves, incluindo aquela do quarto que jamais deveria ser aberto, na ópera de Béla Bartók ele lhe implora que ela desista das portas, que confie nele e o ame, mas não se recusa a abri-las quando a jovem insiste.
É fácil encaixar a esposa de Barba Azul no tipo precedido por Eva ou Pandora e pensarmos nela como mais um dos inúmeros símbolos dos perigos de uma curiosidade desorientada e dos infortúnios que ela invariavelmente acarreta. Contudo, prefiro recordar que a esposa não arrombou porta alguma. As chaves lhe tinham sido dadas. Ou, como vemos na versão operística, Barba Azul não se recusou a abrir as portas, ainda que implorasse à jovem esposa que ela desistisse. Assim, não parece se tratar de mera curiosidade desgovernada, mas do jogo de infantil perversidade de uma insegurança que impõe provações mútuas na tentativa de encontrar as garantias e os limites da possibilidade de confiança.
Creio que, em sua insegurança pueril, a jovem esposa estivesse mais inquieta com a possibilidade de que a chave do quarto proibido não funcionasse do que com o que realmente pudesse estar por trás da porta. Afinal, o medo de que nos seja vetado o acesso a certas regiões da alma do objeto amado pode ser, e frequentemente o é, muito maior e mais fundamentado do que um medo concreto do que pudéssemos realmente encontrar em tais regiões. Nossa capacidade de perdoar uma pilha de cadáveres, afinal, pode se mostrar surpreendentemente maior do que a lógica e o bom senso achariam razoável.
Ele, por sua vez, em sua insegurança de velho, de feio; em sua insegurança de rico e poderoso; em sua insegurança de assassino culpado; em sua insegurança de homem diante da mulher amada, que tem olhos bastantes para vê-lo velho, feio, rico e apaixonado, e ouvidos bastantes para não ter passado imune aos rumores sobre as ex-esposas misteriosamente desaparecidas; creio que seja legítimo acreditarmos que o velho Barba Azul, em sua velada insegurança, enfim, ao entregar suas chaves ao poder da jovem, estivesse desesperadamente testando não a sua obediência, como ordinariamente se crê, mas sua confiança.
O que um e outro anseiam é ser amados sem reservas, mas um amor incondicional que não negasse qualquer chave seria o mesmo que não as pediria jamais e, uma vez que as tivesse recebido, não buscaria testá-las. Aqui, como em tantos outros inumeráveis lugares, é essa necessidade furiosa de certezas que esmigalha o que poderia haver de verdadeiro, belo e bom.
Todos sabemos que há portas que não podem ser abertas, portas cuja abertura não pode senão implicar nossa aniquilação; ao mesmo tempo, após a ultrapassagem de certas esferas do enlaçamento amoroso, não queremos — e, em certo sentido, não temos sequer o direito — de mantê-las fechadas. Talvez essa seja, afinal, uma das mais bem sucedidas imagens do precário e quase impossível equilíbrio da confiança de que os amantes necessitam: a solene e resoluta entrega ao outro das chaves de nossa própria destruição, com a confiança — nunca completamente fundamentada — de que não serão usadas contra nós.

quarta-feira, dezembro 05, 2012

Do inesquecível encontro amoroso

Permanecem e permanecerão válidos os argumentos elencáveis em favor da célebre aposta de Pascal, que há séculos desperta tanta incompreensão por parte de pretensos refutadores, gente que não consegue ou se recusa a entender o que ali estava em jogo. Pululam ainda hoje as mais estapafúrdias tentativas de refutação, que passam ao largo do cerne do problema.
O que estava e está ainda em jogo nunca deveria ter sido entendido como um argumento em favor da existência ou eficiência de um certo caminho de salvação, nem como um argumento em favor desse ou daquele caminho, no caso de haver diversos; o que estava e ainda está em jogo é a impossibilidade radical do jogo para aquele que o compreende, a assimetria disjuntiva e, no limite, insustentável que a aposta revela. Aquele que compreende o argumento em sua lógica mais profunda, que compreende o que realmente se encontra em jogo, não consegue permanecer na hesitação ou na barganha, mas é compelido a se lançar no espaço dessa assimetria.
De um lado, temos uma perda finita com a expectativa de um ganho infinito; do outro, temos um ganho finito com a expectativa de uma perda infinita. As infinitudes de ambos os lados desarticulam de forma insuperável o quadro em que se acreditava ter escrito a equação. Se a incompreensão do quadro o reveste de ares de parvoíce, a compreensão de tal assimetria, por outro lado, inviabiliza qualquer vacilação: a aposta de Pascal, rigorosamente entendida, não é jamais uma aposta!
Para quem não enxerga a dimensão da infinitude que entra em jogo, a aposta soa ou bem como um embuste, uma armadilha tola da qual faceiramente se pretende escapulir, ou bem como algo relativo, recusável. Contudo, para aquele que compreende a natureza dessa infinitude, a aposta deixa de se apresentar como aposta ou jogo e se torna, no exato instante dessa compreensão, uma necessidade à qual ele não é capaz de se furtar e diante da qual perdas e ganhos finitos mergulham na mais completa insignificância. Essa compreensão, em outras palavras, rearticula a vida e os valores desse sujeito de forma tão profunda e inexorável que não é figura de linguagem dizer que ele deixa de ser quem era e que, fosse privado dessa compreensão, não mais se reconheceria a si próprio.
Ah, mas há complicações! Há o tempo, esse que sempre se vinga por nunca nos lembramos de o convidar; sua vingança é transcorrer de forma diferente para cada um de nós. E eis ali um fiel apostador que, não obstante tenha compreendido exatamente tudo o que estava em jogo para ele, e talvez justamente por isso, não obstante sua mais devota convicção, desespera do tempo desconhecido que se arrasta dilacerante entre o instante da aposta e o futuro incerto de sua resolução. Para encontrá-la e conhecê-la, afinal, o apostador haverá de aguardar a própria morte.
Há, contudo, um detalhe ainda mais cruel. Pascal não o menciona no famoso trecho em que fala da aposta, mas sua doutrina da gratia efficax guarda dificuldades bem maiores que as dificuldades lógicas de uma aposta que se desarma a si mesma e que as angústias psicológicas de uma resolução que custa a chegar.
Ainda que o vislumbre de um Paraíso, a compreensão de que ele existe e de que é possível entrarmos nele, ou mesmo a mera compreensão de que esse Paraíso possa existir e de que talvez possamos adentrá-lo, de modo que, portanto, a aposta nele seja, ao menos conforme o dita a inteligência, compulsória, ainda que, enfim, tal compreensão destrua qualquer hesitação que pudéssemos ter em apostar, ainda assim não há qualquer garantia de que a aposta seja suficiente para esse ingresso, ainda que o Paraíso realmente exista. Os jansenistas, e Pascal com eles, repudiam a gratia sufficiens do molinismo. A visão da possibilidade de redenção pode ser condição suficiente para o desejo do desejo do bem, mas não o é para a redenção ela mesma, ainda que se esteja certo a seu respeito.
Eis a crueldade que se esconde na aposta de Pascal: sim, o pecador que a compreender se verá transformado e desejará ser bom, auxiliado pela Graça desejará abrir mão de sua concupiscência degenerada, desejará repudiar os erros sedutores do mundo, desejará a nova vida, desejará a sua santificação tanto quanto seu coração agraciado puder desejar. Mas isso não quer dizer que ele será suficientemente bom. Isso não quer dizer, na verdade, quase nada.
Por certo que possa estar, o Paraíso não depende apenas dele. Talvez todo o seu coração, afinal, seja pouco; e a danação, ainda assim, o seu destino.

segunda-feira, outubro 08, 2012

Considerações sobre a sklerokardia

Mas é impossível determinar os contornos do conflito em que se encontrava a rainha de Ítaca. Os indícios trazem algumas ambiguidades (e que indício nessa vida não as traz?). É da natureza dos conflitos, afinal, desdobrarem-se numa mise en abyme.
Para além daquele conflito que se desenrola entre suas circunstâncias adversas e um senso de dever (consigo mesma, com o marido, com Ítaca, e até com algumas divindades: são deveres distintos e não necessariamente compatíveis), é possível, embora Homero não possa ser culpado de tal suspeita, que houvesse em seu coração uma batalha entre seus desejos, de um lado, e sua compreensão do que é certo, de outro. Com mais de uma centena de pretendentes, ora, é pouco provável que nenhum lhe despertasse uma mínima afeição.
E, ainda que aceitemos que nenhum dos cento e oito pretendentes conquistara ao menos sua consideração, ainda que consideremos sua natureza ser tão fiel quanto a tradição nos relata, não teria a rainha, em algum momento de suas madrugadas, desejado desejar um daqueles pretendentes de modo a se libertar, assim, do fardo quase insuportável da espera? Ou, ainda que aceitemos que o amor que a unia a Odisseu era tão grande quanto sempre se contou, e, na verdade, por isso mesmo, não teria a rainha, nem por um instante, desejado pôr os olhos no cadáver daquele a quem mais amou a fim de, depois de tantos anos, sentir finalmente sua vida recomeçar?
Qual o limite entre tal nível de esperança e um gesto com o qual já se estivesse tentando os próprios deuses? Aliás, tratar-se-ia realmente de uma espera ou não estaria Penélope, tal como uma Xerazade, engenhosamente ganhando tempo? Ocultaria planos de que nem suspeitamos? Ou talvez ganhasse tempo mesmo sem engenho, mas cheia sim é de desespero, procrastinando o momento de uma decisão que acabaria sendo forçada a tomar. Ou, desçamos mais um degrau, talvez tivesse colocado sua astúcia a serviço de uma mera covardia e maquinado todo esse artifício apenas para se eximir da responsabilidade de decidir.
Sim, são todas considerações demasiado, insuportavelmente modernas: trariam náuseas ao Olimpo. E, contudo, para nós, nós que temos os corações endurecidos, soam todas verossímeis. Sempre é possível, aliás, arriscar hipóteses ainda mais sombrias, as quais, é verdade, com frequência dizem mais das circunstâncias de quem as levanta do que da situação em questão. Talvez, ouso supô-lo, não houvesse conflito algum e para Penélope a mortalha de Laerte fosse meramente um mórbido passatempo para o tédio de seu coquetismo.

quarta-feira, outubro 03, 2012

Da importância da releitura

Kafka repetiu um punhado de vezes que o principal pecado humano é a impaciência. Por causa dela somos expulsos do Paraíso; por causa dela não nos é possível retornar.
Sim, sem textos a vida não se digere, não se compreende, mas digestão e compreensão não podem jamais ser fins em si. Digere-se e compreende-se, afinal de contas, aquilo que se quer viver melhor. Ou aquilo que se precisa entender não dever ser vivido novamente. Todavia, o esforço têxtil é repleto de seus perigos. Há sempre o risco de o texto se adiantar demais, não esperar pela vida, e de, perdendo-se e tropeçando em si mesmo, começar a remeter tão somente a si, destruindo-se como um estômago que se digerisse. Bem como há o risco de o texto, impaciente pela vida que não chega, repetir-se tanto, evocar tão sofregamente os seus momentos mais verdadeiros que acaba por encontrar suas mais caras palavras esvaziadas pelo desgaste de um cotidiano estéril, banalizadas demais para comunicarem o que precisa ser comunicado. Ou ainda o risco, igualmente terrível, de repetir tão exaustivamente os momentos que a vida implora para ver passarem que acaba por encher de carnes um fantasma que talvez quisesse apenas ser esquecido. É preciso, portanto, esforçar-se simultaneamente por um destecer, por um equilíbrio que é, no limite, uma tarefa infinita, sendo inevitável que, ao menos em certa medida, a vontade de viver acabe desastrosamente implicando autofagia, banalização e fantasmagoria.
É mister suportar o silêncio, inventar o destexto. Afinal, é verdade, nem todo mundo tem algo a dizer. Seja por simplesmente não ter ainda, ou por já não tê-lo mais; seja por já tê-lo dito copiosamente, ou por ter tentado fazê-lo; seja pela resignação de saber que talvez seja impossível dizer tudo aquilo que realmente importa, que talvez haja tão somente uma meia dúzia de palavras mágicas que hão de ser repetidas como numa prece, como num gesto de polimento, até que seu desgaste se converta em novo brilho. Se considerarmos que o polimento é impossível sem um meio abrasivo, não descobrimos que essa repetição possa ser, no fim das contas, uma forma de destecer?
Uma Penélope que não destecesse fracassaria tanto e quase tão rapidamente quanto uma que não tecesse. Uma vez que as circunstâncias do mundo (o contexto: guerra, caprichos de deuses, encantamentos, ciclopes e todo um oceano fortuito de desejos alheios que escapam totalmente ao seu controle) estão em conflito insolúvel com as circunstâncias de seu espírito (o pretexto: a convicção de uma consciência que simplesmente sabe o que é o certo a se fazer), é pelo equilíbrio precário e perigoso de um tecido a se destecer que ela conserva o que precisa ser conservado até que, finalmente, um dia… bem… não, não, isso ela não tem como saber

quinta-feira, setembro 06, 2012

Do piriri literário

Deve-se prestar mais atenção à miséria gastronômica de nossa época. Desaparecido o jejuador ascético, pululam os jejuadores assépticos. Outrora já se recomendou àquele discrição, ar jovial, rosto e cabelos lavados: a boa aparência deveria ocultar a mortificação, protegê-la da vaidade que amiúde a acompanha. Para esses últimos, contudo, uma bela aparência é o fim mesmo da mortificação: a vaidade não é mais um risco, mas um propósito.
Não falta quem entreveja a nocividade desses hábitos alimentares cada vez mais vulgares e cada vez mais incontornavelmente nossos, mas parece faltar quem os compreenda em seus desdobramentos mais vastos, para além desse ideal de saúde esterilizada que se espraia pelo imaginário do nosso tempo. Esterilização, aliás, que há de ser ouvida em sua ambiguidade nada trivial: o mesmo movimento asséptico que procura furiosamente suprimir por padronização e maquiagem todas as imperfeições das superfícies do mundo torna-o a cada dia menos fecundo.
Se, por um lado, assistimos a um embrutecimento gástrico com a proliferação de alimentos francamente ruins, pré-cozidos, congelados, desidratados, conservados, colorizados e enlatados, que se vendem às custas da velocidade e praticidade com que são deglutidos, que nos desoneram da necessidade de aprender a escolher e preparar as refeições, para não mencionar caçar ou cultivá-las, por outro lado assistimos a um afrescalhamento gástrico que se faz notar na reação da saúde esterilizadora, a qual, contra a oferta de todo tipo de porcaria alimentícia, propõe-nos um cardápio asséptico, saudável porque quase inócuo. E, à parte disso tudo, nas esferas da haute cuisine, cada vez mais se sacrifica frivolamente a nutrição no jogo fastuoso de belas formas e de consistências insípidas. Estômagos embrutecidos para lá, afrescalhados para cá: são sempre diversas as formas de se perder o que importa.
Lembro de uma carta de Sêneca em que digestão e escritura se aproximam. O filósofo aconselha seu discípulo a procurar um equilíbrio entre os esforços que despende na leitura e aqueles que despende na escrita: é pela escrita que se digere o que se leu. É somente ao se escrever que o conhecimento é decomposto, processado e rearticulado a fim de se tornar fonte de energia, de se incorporar de fato à vida daquele que estuda. Caso contrário, chega-se tão somente ao entorpecimento da indigestão.
Essa imagem, que vale para o indivíduo, deve valer também para toda uma sociedade. A literatura é o estômago da cultura. É nela que as demandas e tensões de um tempo são articuladas. É ela que decompõe e processa os conhecimentos, intuições, medos, esperanças, carências de uma época. Digere os elementos e permite que sejam incorporados, que sejam conscientemente pensados, aprimorados, refinados e discutidos. Defendidos ou impugnados. Afinal, não há discussão cultural, política ou filosófica cujos elementos fundamentais não tenham passado necessariamente por uma digestão literária. Não raro com antecedência de anos ou décadas.
É a lição à qual Karl Kraus e Victor Klemperer dedicaram suas vidas: uma literatura subdesenvolvida e uma linguagem imprecisa, frouxamente ambígua, intempestivamente informal, ora hiperbólica, ora eufemística, alusiva, deformada, levam-nos a um paulatino empanzinamento do espírito. Do sabor ao saber e vice-versa: nossa miséria intelectual é uma miséria literária, e nossa miséria literária é análoga à miséria de nossas dietas.
Nenhuma delas tem a ver com escassez de matéria-prima. O que nos falta são estômagos menos imprestáveis.

terça-feira, agosto 28, 2012

Das esferas aos círculos

Há limites para o jogo de interpretações possíveis. E tais limites não precisam ser estipulados pela tradição das leituras convencionadas, por costumes ou supostas intenções originais. Ao menos para se começar a jogar, seria suficiente que tais limites fossem estipulados pela consistência que oferecessem.
Quando, como numa recente montagem da Götterdämmerung em São Paulo, se faz com que a autoimolação de Brünnhilde seja saudada por uma celebração da pluralidade de formas possíveis da concupiscência, o que se tem não é uma interpretação revolucionária ou sequer alternativa, mas uma anti-interpretação, um belo tiro no pé, o qual produz um curto circuito que esvazia qualquer sentido da obra. Afinal, o que resta de toda a tetralogia do Anel do Nibelungo quando se perde a distinção entre a renúncia de Alberich, na primeira cena da Rheingold, e a renúncia de Brünnhilde, na cena final da Götterdämmerung? Se nada houvesse além desejo e essa última cena fosse movida pelas mesmas forças que moveram a primeira, retornaríamos ao ponto inicial muito mais pobres do que estávamos no começo, pois então sequer se teria algo além de desejo a se renunciar em troca de desejo, tudo se resumindo ao fastio de um jogo de renúncias de desejos em troca de desejos, essas renúncias mobilizadas elas mesmas por desejos: mise en abyme infernal de um relativismo erótico e autorreferente. Se fosse por aí que o mundo acabasse, sequer faria sentido que viesse a começar.
Ao se extirpar da compreensão da experiência humana seu eixo vertical, extirpação essa inevitável em qualquer uma das muitas versões possíveis em que o naturalismo se apresenta, perde-se a capacidade de descrever satisfatoriamente, mesmo que de forma apenas esquemática, fenômenos dos mais triviais. Do medo à angústia, do prazer à bem-aventurança, da irritação ao ódio, do cansaço ao tédio, da afeição ao amor, da estratégia ao sacrifício, do animal ao humano: para a horizontalidade naturalista, que — no limite —, por malícia, confusão ou estupidez, aposta na possibilidade da redução de todo o espaço da realidade a um único plano, tudo o que se tem aqui seriam meras diferenças de grau, de intensidade ou complexidade.
Para uma tal mentalidade procustiana, uma renúncia é apenas cálculo, saudades são uma espécie de carência e uma vontade ou decisão não podem ser nada além de libido. Como resultado, as descrições da experiência humana resultam em caricaturas monstruosas, imprestavelmente simplistas ou francamente ridículas. Bela interpretação relinchante.

quinta-feira, julho 26, 2012

Da eutanásia radical

Lembro de um conto de Jenő Heltai em que um médico é chamado para atender às pressas a um moribundo, o qual logo se descobre se tratar da Morte em pessoa. Ao se deparar com seu paciente, um velhinho mirrado e indefeso sobre o leito, o médico não consegue evitar a tentação de matar a própria Morte e libertar o mundo de seu domínio. Confusão típica em que nossa natureza limitada sói se enredar quando se aproxima de um universal com cálculos e economias particulares: para aquele cuja missão ordinária é salvar vidas, matar a Morte pode parecer um grande negócio, uma artimanha, um macete para, como que por atalho, saltar ao grau derradeiro de excelência na execução de seus serviços. Tudo se passa como se entre salvar vidas e salvar a vida em geral não houvesse senão uma diferença de grau, uma picuinha gramatical.
Evidentemente, as boas intenções do médico malogram, sucumbem à própria vaidade. Após ter cuidado para que a Morte morresse, aquele velhinho caquético e aparentemente inofensivo que, a experiência nos ensinaria diariamente, a despeito de seu estado já fazia colheitas bastantes pelo mundo, o atrapalhado médico descobre, agora já tarde demais, que o filho da velha Morte, um brutamontes monumental e desavergonhadamente sanguinário, está pronto para assumir o posto do defunto pai.
Fica a lição conservadora de que são imperscrutáveis os males maiores que um mal menor está a afastar; a lição metafísica da descontinuidade entre os particulares e o absoluto; a lição teológica de que combater o Mal no mundo não pode ser confundido com a tentação orgulhosa de com as próprias mãos e méritos eliminar o Mal do mundo; e a prosaica lição da vitória do bom senso a nos lembrar que assassinar velhinhos agonizantes não há de ser uma boa ideia, afinal.

terça-feira, julho 03, 2012

grandes gestos

Já há tempos insisto que um dos maiores sintomas da miséria de nossa época é estarmos tão prontos a reconhecer, admirar e elogiar o que seria, sob critérios rigorosos, simplesmente o necessário, o razoável: não raro, tão somente o mínimo. É chegado há muito o tempo em que usar corretamente as vírgulas basta para que digam que você escreve bem.
Ainda assim, não foi sem um resquício de horror que recentemente observei alguns apelos espalhados pelo metrô de São Paulo que, na minha ainda tão inocente fantasia, só fariam sentido sob a chave da ironia. "Faça um grande gesto", exorta-se: antes de embarcar, permita que os outros desembarquem; mantenha-se à direita na escada rolante. Sombrios os tempos em que princípios de estrito bom senso são tomados por um "grande gesto". Ao que tudo indica, em alguns meses teremos por lá um "faça um grande gesto: não tente entrar ou sair do vagão antes de a porta estar aberta".
Passado um século sob a mitologia darwinista, falta muito, muito pouco para que a mera sobrevivência, em seus aspectos mais elementares, mais banais, seja elevada às excelsas alturas da glória do gênio humano e celebrada em hexâmetros dactílicos como o supremo gesto de heroísmo. Na verdade, falta apenas quem ainda ligue para a escansão.

quarta-feira, junho 13, 2012

Uma última porta

Uma mensagem, um relato, um anúncio, uma confissão, uma profecia: certas informações têm o poder de num instante transformar, de modo irreversível, nossa própria existência e a maneira como a enxergamos, o poder de santificá-la ou condená-la, convertê-la ou assombrá-la, corrigi-la ou esmagá-la.
Poucos temas foram tão retratados na iconografia cristã quanto a annuntiatio nativitatis Christii, em que o anjo Gabriel anuncia à Virgem que ela conceberá o filho de Deus, sendo mesmo difícil encontrar um grande mestre, particularmente no período medieval e renascentista, que não tenha dedicado ao menos uma obra à cena. Botticelli, Da Vinci, Caravaggio, Giotto, Murillo, Donatello, Rubens, só para mencionar alguns dos mais conhecidos, reproduziram-na em pinturas, afrescos, esculturas. El Greco, só ele, pintou mais de uma dezena de vezes essa cena que a tradição tornou o primeiro mistério gozoso do Rosário, alegoria plena da humildade. E num instante a Graça se derrama, Maria bendiz a Providência e reatualiza o relato não apenas de sua própria existência, mas o de toda a história humana. Num extremo oposto, no que pode ser lido como uma paródia ou avesso mórbido da Anunciação, o mensageiro imperial de Kafka carrega através de multidões infinitas e espaços intransponíveis a mensagem importantíssima que o Imperador, de seu leito de morte, destinou precisamente a ti, que fazes de tua vida a espera pela mensagem que jamais chegará.
Na teoria da tragédia, principalmente, mas também na da comédia e na da épica, a anagnórise é o momento de reconhecimento em que, desde Aristóteles, a passagem da ignorância ao conhecimento leva as tensões acumuladas a reverterem decisivamente a ordem dos acontecimentos e à produção de amor e ódio. O filósofo é claro nesse ponto: para fins trágicos, a peripécia não deve ser aleatória ou engendrada por forças superiores, mas sim resultado direto do reconhecimento da hamartia, o erro trágico fatal causado por hybris ou por ignorância. Ou por uma mistura de ambas. Note-se, contudo, que não apenas uma atualização da compreensão do que se passou, mas também a informação profética do que ainda está por vir pode desencadear ou produzir efeitos terríveis: a tragédia de Macbeth o ilustra de forma que nos é particularmente próxima e as self-fulfilling prophecies de Robert Merton poderiam trazer um vernizinho científico ao tema.
Todavia, sabemos, o tecido ordinário de nossas vidas não se fia habitualmente em motivos tão solenes, heroicos ou demoníacos. Não é que erremos pouco, mas mesquinhos, covardes e atrapalhados que somos é raro termos a chance de errar gravemente, porque raramente nos aproximamos do que é grave. E, mesmo quando chegamos a fazê-lo, fingimos por costume que o deixamos preso num cercadinho enquanto fomos logo ali nos divertir. A frivolidade que nos protege do desespero trágico é a mesma que nos desterra do heroísmo ou da redenção.
Num mundo em que anjos não mais seriam bem-vindos, em que profecias tendem a ser motivacionais e decisões se esforçam por ser tecnicamente administrativas, num mundo em que se é incentivado a se perdoar a si mesmo ­— como se tal barbaridade fizesse algum sentido! —, e em que o próprio Mal é sempre visto como remediável, num mundo em que sequer se aguarda a mensagem que não chegará e em que, na impossível conjectura de que chegasse, se estaria pronto a afirmar que ela é apenas mais uma opinião (que teria, decerto, de ser respeitada, ainda que não fosse compreendida, como se a pose de respeito diante do que não se compreende não fosse, ela mesma, a mais covarde figura do desrespeito), nesse nosso mundo, enfim, que é tão obstinadamente refratário aos mortos, talvez a última esperança resida justamente no relato de nossa impotência. Não a impotência do herói que não consegue fugir da própria Fortuna, mas apenas a prosaica impotência de assimilar certas experiências, a compreensão súbita e implacável de que existem coisas muito além da nossa compreensão; não apenas entre o céu e a Terra, mas logo ali, entre um lado e outro da mesa.
Talvez a última esperança, afinal, resida no relato que, em vez de nos indicar um futuro glorioso ou uma danação sobrenatural, em vez de nos elevar à gravidade do reconhecimento de um erro trágico pelo qual sejamos responsáveis e de nos forçar a compreensão de que nós não somos quem achávamos ser, seja o relato de que os outros, os que amamos, possuem experiências que superam nossas próprias forças. Nesse tipo de existência, esse jogo configurado na chave "o que ainda dá pra fazer mode on", o que resta para nos esmagar não é culpa ou responsabilidade, não é esperança ou desespero, mas tão somente o amor na sua versão mais impotente e excruciante: a compaixão, talvez uma última porta para o divino.
Pensemos, por exemplo, no desfecho de The Dead, de Joyce. Gabriel Conroy é alguém tão mergulhado em sua frivolidade que nada do que lhe fosse diretamente revelado a respeito de si próprio poderia tocá-lo de verdade. Com um gracejo pretensamente espirituoso, estaria pronto para relativizar qualquer responsabilidade. Contudo, a revelação de que Gretta, sua esposa, suportava há tantos anos, com silêncio e dignidade, o peso inimaginável da recordação do namorado de infância morrendo por sua causa o abala de maneira muito mais profunda do que se tivesse descoberto a si mesmo culpado por um assassinato.
A frivolidade aqui de nada serve; enfim um recanto que ela não atrofia! Como dissimular que não sentimos uma dor que de fato não sentimos e cuja mera imaginação parece nos esmagar? Ela não vem dos sentidos ou da memória real de uma história vivenciada que pudéssemos relativizar, reinterpretar ou esquecer, mas é a dor inferida a partir de uma história narrada que é, como bem descreveu Kundera, "multiplicada pela imaginação, prolongada por centenas de ecos". Nos casos mais extremos, acontecerá de acordarmos à noite com imagens que nunca vimos e gritos que nunca escutamos: com fantasmas que não são do além-mundo do nosso mundo, mas de um mundo que está bem ali do nosso lado, diante do qual somos humilhados em nossa absoluta impotência, um mundo que amamos e em que, contudo, não podemos jamais repousar.

quarta-feira, maio 23, 2012

Verweile doch! Du bist so schön!

No décimo livro das Metamorfoses, Ovídio conta a história do triste Pigmalião, esse romântico avant la lettre que, em revolta contra o que julgava ser a inaceitável precariedade da realidade, recusava-se a tomar parte dela. Para Pigmalião, tão odiosos eram os vícios com que fora dotado o espírito feminino que ele vivia há tempos sozinho, mergulhado na pirracenta vaidade de seu celibato e dos elevadíssimos ideais que projetava sobre a natureza humana.
É impossível saber com certeza qual sua derradeira motivação; se foi a debilidade provocada por essa implacável solidão dos idealistas ou se foi, afinal, um gesto de audácia, essa tão romântica insanidade que cedo ou tarde leva aqueles que enxergam tantas imperfeições na realidade a se julgarem os agentes perfeitos para reformá-la. É possível, enfim, que tenha sido fundamentalmente o tédio, esse que abraça todas as afetações. Contudo, qualquer que tenha sido sua motivação, o que se sabe é que um dia Pigmalião tomou para si a mais bela peça de marfim e a partir dela esculpiu a mulher que sempre quis. É de se crer que olhos mortais jamais tivessem visto formas tão belas, pois o escultor se apaixonou desvairadamente por sua estátua, chegando a cobri-la de carícias, mimos e presentes.
Não julguemos a morbidez de Pigmalião! Afinal, o que pode haver de mais arrebatador do que a beleza cristalizada na imutabilidade de uma estátua, sempre pronta a responder, em qualquer instante em que lho seja solicitado, com a reafirmação de sua promessa de que continua a ser como sempre foi e de que assim permanecerá por todo o sempre? Não são precisamente esses, afinal, os pedidos de confirmações mais trocados por casais na aflição de seus leitos, as confirmações de que continuam se amando e de que assim permanecerão? Não é a vertigem da paixão justamente a mais frenética das agitações de um desespero que clama pelo impossível ideal da imobilidade? Afinal, não firma a rigidez do marfim um contrato de felicidade, dessa felicidade de que, em meio às mutações incessantes da vida, só ouvimos falar na forma de promessas? Não, não julguemos Pigmalião: a crueza de sua mentira é mais honesta que os delírios de eternidade de todos os enamorados.
Ovídio nos conta que o escultor se viu a tal ponto fascinado por sua própria paixão que ofereceu um sacrifício à deusa do amor, rogando-lhe uma esposa como a que fizera de marfim. Eis que a verdade de seu desejo se infiltra na mentira de sua prece: uma esposa real, sim, mas como sua estátua!
O poeta é reticente ao explicar por que, afinal, Vênus escuta as súplicas. Gosto de pensar que foi, no fundo, um castigo pela hybris do artista. Ao atender ao pedido, a deusa não encontrou senão uma forma particularmente cruel de aniquilar a precariedade de um ideal.
Na versão de Ovídio, Pigmalião entra em êxtase ao voltar para casa e decobrir sua estátua transformada em mulher. Corpus erat! Também esse êxtase, não duvidemos, é pura vaidade.
A narrativa se interrompe logo em seguida. Ovídio não nos conta nada sobre isso, mas qualquer um pode imaginar que não demorou muito para que a aflição se instalasse no coração apaixonado. Logo vieram os medos: os medos das mudanças e os medos dos medos. Logo Pigmalião, das profundezas de sua pusilanimidade mortal, ansiaria por uma felicidade petrificada. Para reaver aquela ebúrnea paz da certeza de que não poderia perder sua amada, de que ela não poderia deixar de amá-lo, de que ela não poderia se tornar, com o tempo, menos merecedora de seu amor, de que ela não poderia, enfim, desapontá-lo, frustrá-lo ou traí-lo, ah!, em troca daquela felicidade Pigmalião teria de bom grado aceitado de volta a beleza gelada e lívida de sua amante de marfim. Os deuses, contudo, não atenderam a esse segundo capricho.
Talvez houvesse ainda uma hipótese vertiginosa, que nos custasse muito a compreender. Talvez tenha havido, ou venha haver, com menor ou maior razão, quem entendesse que a deusa Vênus, embora fingindo diante dos outros deuses estar apenas a aplicar uma punição à natureza desmedida do artista, estivesse, no fundo, vingando o ressentimento da própria vaidade ferida. É que, contrariando toda a decência, todo o bom senso e mesmo toda a lógica, talvez houvesse quem dissesse que, seja para mortais ou imortais, aquela estátua tenha sido, de fato, o que de mais belo já se avistou pelo mundo.

segunda-feira, maio 14, 2012

et veritas liberabit vos

Se o travesti Timóteo Meneses, de Lúcio Cardoso, já denunciava que a única liberdade que integralmente possuímos é a de sermos monstros para nós mesmos, a camareira Lynn Zapatek, de Markus Orths, nos lembra que o medo de monstros sob a cama talvez seja o avesso do nosso desejo de espreitar o mundo quando ele acha que não estamos mais ali; um desejo de verdade, a fantasia de surpreendermos, sobre e sob a cama, uma realidade mais real, mais pura do que aquela a que habitualmente nos acostumamos, mais espontânea do que aquela que tão frequentemente se maquia com trejeitos grotescos cobiçosa por olhares. O desejo, enfim, de nos tornarmos monstros, porque há verdades que só se deixam vislumbrar assim, porque é através do monstruoso que os limites do essencial e genuinamente humano chegam a se mostrar.

terça-feira, abril 17, 2012

O avesso da confabulação

Se é verdade que nossas recordações constituem uma boa parte do que somos, desse eu pelo qual nos reconhecemos e ao qual referimos nossos pensamentos e ações, por outro lado deve ser notado que amiúde acontece de possuirmos uma miríade de recordações com as quais não mais nos identificamos apesar de as sabermos nossas. Não mais somos capazes de reconhecê-las como sendo parte daquilo que somos, não mais nos sentimos à vontade de conjugá-las na primeira pessoa; guardamos tão somente o registro, o protocolo emitido pelo hábito das narrações, de que fomos nós os personagens daquelas cenas. Um estranhamento fantasmagórico, contudo, acompanha essa consciência: de alguma forma ela deixou de ser a consciência que temos de uma experiência que de fato vivenciamos e reconhecemos como sendo a nossa, de alguma forma ela agora se apresenta diante de nós tão somente como a consciência ex auditis que temos de uma história que nos foi contada. E, de fato, trata-se da mera consciência de uma história narrada, e não da consciência de uma história vivenciada, pouco importando aqui que, no caso, tenhamos sido nós mesmos, ou alguma versão de nós, simultaneamente os narradores e personagens da narrativa.
Enquanto nos referimos às recordações das histórias vivenciadas como sendo um elemento essencial de nossa própria constituição, as recordações das histórias narradas integram um repertório de experiências difusas que pouco se diferenciam de nossa capacidade imaginativa. Entram, é claro, na complexa equação da qual somos resultado e pela qual respondemos, mas não num sentido essencialmente diferente do que a recordação dos enredos das epopeias, tragédias, dramas e romances que lemos ou de que ouvimos falar.
O estranhamento se dá diante da consciência de que, em algum momento, nossa relação com aquela história narrada já foi uma relação vivenciada. Eu sei que aquela recordação é minha, mas o sei apenas porque me lembro de minha própria memória recontando a história para si mesma.
Muitas podem ser as formas da morte. Em uma passagem que, avant la lettre, poderia ser dita cheia de ecos borgianos, Spinoza afirma, com a naturalidade de quem dissesse “está chovendo”, que nenhuma razão nos obriga a considerar que um corpo somente morre quando se encontra transformado em cadáver. “Muito pelo contrário, conforme a experiência mesma nos ensina”, ele diz. O texto, então, assume um tom mais sombrio. Spinoza menciona que ouviu falar de certo poeta espanhol que, uma vez gravemente adoecido e não obstante tendo por fim se recuperado da moléstia, perdeu de tal forma a memória que não mais reconhecia como suas as fábulas e tragédias que outrora escrevera. “Por vezes”, comenta o filósofo, “acontece que um homem sofra mutações tais que dificilmente poderia ser dito permanecer ainda o mesmo”. O contexto da passagem é mais radical do que a mera citação deixa transparecer: Spinoza não está simplesmente afirmando que as pessoas mudam conforme suas experiências, o que de resto seria uma banalidade, mas sim que certas afecções podem modificar de tal maneira os indivíduos que, rigorosamente falando, eles morrem e se tornam outros.
Se hoje é bem conhecida a possibilidade de que cheguemos a acreditar sinceramente em recordações de eventos que jamais aconteceram (e os trabalhos de Elizabeth Loftus demonstram inclusive a possibilidade de tais recordações serem deliberada e clinicamente criadas), o avesso dessa confabulação é nos depararmos com recordações que deixaram de ser propriamente nossas, ainda que reais e de modo algum esquecidas. Arrebentada a cadeia virtual de inumeráveis atualizações que ligava numa ponta o momento do acontecimento propriamente dito e, na outra, sua narrativa mais recente, tais recordações passam a vaguear destripuladas e à deriva pelas vastidões oceânicas de nossa alma à espera da misericórdia do esquecimento. Trata-se da desconcertante experiência de que, como num aborto retido, carregamos em nós partes mortas do que já fomos.
O passado pode estar povoado por diversos fantasmas, mas os mais assustadores são aqueles diante dos quais guardamos um respeito incomum, quase reverencial: aqueles que se desprendem dos cadáveres de versões apodrecidas de nós mesmos.

sexta-feira, março 02, 2012

Tanto, tanto

Se na voracidade me adianto
e se com medos sonhos eu maculo,
é que o passado me aparece nulo
e tenho em mim eu mesmo meu espanto.

Se fito em desconcerto esse recanto
mais repleto do desejo que engulo,
teu gosto me descerra qual casulo
certo inseto e no afeto o desencanto

é tanto que a memória não comporta
teres sido furor, algoz, vadia…
Nem viste tudo que estava à porta;

tanto tanto que a gente o disperdia.
Não chega a ser consolo, mas conforta:
também esfriam enfim os sóis um dia.

segunda-feira, agosto 22, 2011

Deuses em fuga, vícios travestidos

É bem conhecida a história da fuga dos deuses, na qual Heine descreve a desdita das antigas divindades, que repentinamente se encontraram obrigadas a buscar refúgio nos confins de um mundo em processo de cristianização. Contudo, o processo contrário, ainda que mais afim às farsas do que às teogonias e epopéias, é ainda mais notável.
Uma vez que, em meio à fuga, as divindades deixaram para trás seus antigos templos, ídolos e paramentos, os mesmos não tardaram a ser usurpados por vícios errantes e por velhos demônios, os quais não hesitaram em, do alto de seus novos altares, estabelecer acordos variados e oportunistas com o mundo e garantirem assim uma sobrevivência burlesca, expediente que uma verdadeira divindade jamais teria podido sequer cogitar. Heine nos conta as tristes desventuras dos velhos deuses, mas nada diz sobre farsa que desde então se encena em seus santuários.
É por isso que, para todas as virtudes, quase sempre vale o que, no conto de Machado, o Diabo explicara a Deus: rainhas celestiais, cujos mantos de veludo são rematados em franjas de algodão. Nem mesmo o próprio Nietzsche, sempre tão rico em imagens, produzira uma melhor.
O que não chega a ser propriamente novidade, mas vale hoje como talvez nunca antes: nesses tempos obscuros, em que a miséria mais profunda sói se apresentar travestida de excessos, moderação quase sempre significa o sacrifício da verdade no altar do oportunismo, esse soberbo sacrário erigido sobre a toca morna da covardia. Lê-se, aos pés do ídolo, o usurpado nome da titânide Métis.

segunda-feira, julho 25, 2011

O que se chama imprudência

Em suas Considerações sobre Pecado, Sofrimento, Esperança e o Caminho Verdadeiro, Kafka anota num aforismo: “A partir de um certo ponto não existe mais nenhum retorno. Este ponto há de se alcançar”. Consideração semelhante é a que rabisca Werner Heisenberg em sua autobiografia, quando explica a particularidade da travessia de Colombo que o distingue de qualquer outro navegador: não é meramente por se ter lançado ao mar que ele descobriu a América, mas por deliberadamente ter navegado para além do ponto que permitiria à frota o regresso ao cais. A história das conquistas militares é repleta de episódios semelhantes, sendo a travessia do Rubicão provavelmente o mais célebre exemplo.
Conta-se também que Tariq ibn Ziyad, ao comandar o desembarque das forças mouras em Gibraltar, ordenou que seus navios fossem incendiados, expediente por meio do qual criou a impossibilidade de que suas tropas cogitassem fugir, garantindo assim a conquista da Espanha, até então sob domínio dos bárbaros visigodos. E os espanhóis bem que devem ter aprendido algo com isso, pois o mesmo ardil foi repetido por Hernán Cortés, setecentos anos depois, não deixando alternativa a seus homens senão marcharem sobre o território asteca.
Entre César e Colombo, que assumiram sobre si o peso inevitável da irrevogabilidade de uma decisão que precisou ser tomada, de um lado, e Tariq ibn Ziyad e Hernán Cortés, que forjaram uma irrevogabilidade que garantisse a tomada da decisão que tinham por certa, de outro, desdobra-se o impasse hesitante do homem mediano que sempre procura agir de modo conveniente, comprometendo-se o menos que puder, barganhando pequenas oferendas a todos os deuses de que ouve falar e se certificando, a cada trôpego passo, que pode correr de volta, sem grandes perdas — sem nenhuma perda, se possível —, para um lugar quentinho qualquer. Decerto os extremos são fenômenos distintos. Acolher a responsabilidade de se ter cruzado um ponto de não retorno é, em vários aspectos, diferente de se criar um tal ponto. Entretanto, sempre que nós pensarmos nas grandes conquistas, esse ponto estará lá, assumido ou forjado, bem no meio da narrativa.
Uma voz inoportuna deveria se erguer agora:
— Sempre que nós pensarmos nas grandes derrocadas também.

terça-feira, julho 05, 2011

Um elogio aos pesadelos

Se sonhos forem, de fato, os meiozinhos de que dispomos para uma parcial realização de nossa concupiscência, não é de todo inconcebível que um homem que durante a vigília fosse suficientemente atormentado por seus desejos e que, em seu repouso, se encontrasse enredado pelas variadas e malfadadas tentativas de realização do mesmo viesse a sonhar, numa noite gloriosa, que não mais fosse capaz de sonhar. Para ele, o pesadelo de não mais sonhar seria o alívio máximo, a realização suprema de sua força vital, e se confundiria mesmo com um grau promissor de bem-aventurança. Despertaria, então, com o alívio que só pode ser experimentado e compreendido por aqueles que, ao despertarem de terríveis pesadelos, percebem-se na segurança da banalidade de suas camas.
Não se acentua suficientemente a ambigüidade do fato de que o despertar dos pesadelos é, não obstante os suores, a dispnéia e a taquicardia características, um momento muito mais apreciável do que o despertar dos mais maravilhosos sonhos, que em curtíssimo prazo não trazem senão a lembrança da frustração dos sonhadores. E, se Calderón de la Barca graceja que a la vida es sueño, Pascal lembra que ela é um sonho un peu moins inconstant. É dessa menor inconstância que vem o segredo de seu horror. Note-se que não é num pesadelo, mas sim em sua própria vida, que Gregor Samsa descobre o caráter pestilento de sua natureza.
Se sonhos se prestam a nos forçar a lembrar que a realizaçãozinha parcial de nossos desejos se funda sobre uma irrealização fundamental, os pesadelos possuem a saudável missão de, ainda que apenas pelos poucos instantes do despertar, fazer-nos esquecer do mal endêmico que há de nos acompanhar quando nos levantarmos da cama: um mal invariavelmente pior do que o pior dos pesadelos, posto que se traduz numa ânsia por novos sonhos e é à prova de qualquer despertador.

segunda-feira, maio 16, 2011

Fearful Symmetry

Lembro-me de uma passagem dos Pensées em que Pascal observa, em tudo inspirado por Santo Agostinho, que a virtude não é algo em que nos sustentamos por nossa própria força, mas que é apenas par le contrepoids de deux vices opposés que nos mantemos de pé, num sinistro equilíbrio de vícios, dores e enganos que, em seu conjunto simétrico, permite que a vida não se destrua. O caminho seguro para se livrar de um vício é colocando outro no seu lugar. Livrássemo-nos de um deles sem eleger substituto, o peso de todos os outros nos esmagaria.
Semelhante simetria sustenta nossas saudades. A saudade daquilo que não foi, ou do que em algum momento se acreditou que poderia ter sido, é apenas o contrapeso necessário da mais concreta saudade do que de fato se era e se deixou de ser. É graças a essa simetria, e possivelmente apenas graças a ela, que nem essa, nem aquela saudade nos engole. O equilíbrio se desdobra e ecoa em dois níveis: pois, se é apenas graças a doses desmedidas de esquecimento que se pode acreditar na existência pretérita de alguma propriedade, seja real ou pretendida, base da sensação de falta, é também apenas graças ao esquecimento que se consegue acessar a sensação de que tal propriedade era boa. Esquecemo-nos do tanto que perdemos, e conseguimos acreditar ter ganhado algo; esquecemo-nos dos piores traços daquilo que acreditamos ter ganhado, e conseguimos acreditar que fosse algo bom. E é apenas assim, à base desse duplo esquecimento, que as saudades nos enganam e ludibriam nossa vaidade, fazendo-nos acreditar que em algum momento algo valeu a pena. Pois tal crença, contudo, por pungente que seja, é o que pode dar alguma dignidade a um passado em si mesmo repleto de trivialidades.
Numa de suas belas imagens, Hugo von Hofmannsthal se refere num poema a uma saudade sem nome, ein namenloses Heimweh, que em silêncio chorasse pela vida, e a compara à melancolia de quem passasse à noite, a bordo de um navio, pelas margens de sua cidade natal. Veria de longe os becos de outrora, ouviria o murmulho das fontes e sentiria o perfume dos lilases, a luz acesa em seu quarto lhe acenaria involuntária, mas o navio o arrastaria para mais e mais longe de tudo o que ele acreditasse ter sido e ter podido ser.
Quando não se pode ou não se deve matar a saudade, seria bom que não fosse tão difícil deixá-la morrer.

segunda-feira, abril 25, 2011

Uma tarefa para os historiadores

Ganhos e perdas, é claro, só fazem sentido a partir de um critério. É relativamente fácil escrever as histórias das conquistas e descobertas, não apenas porque elas produzem registros e alegrias, mas principalmente porque o critério que as define enquanto tais é algo com que nos identificamos e pelo que nos reconhecemos, ainda que, às vezes, esteja tão próximo que não se deixe enxergar.
Muito mais importante, contudo, especialmente numa época em que a idéia de progresso ainda parece fazer tanto sentido, seria escrever uma história das derrotas, das perdas e dos esquecimentos. Mitigaríamos a idéia de progresso tão logo começasse a ser realizado o impossível inventário infinito não apenas daquilo que se tivesse sacrificado, daquilo a que se tivesse renunciado, ou que ostensivamente se tivesse jogado fora, mas principalmente do que se perdera e daquilo de que se esquecera. Sobretudo daquilo que nunca se tivesse conseguido ou sequer ousado compreender.

terça-feira, abril 19, 2011

"A fina, a doce ferida"

Em alemão há um provérbio a advertir que não se deve pintar o demônio no muro. O sentido é claro, é rasteiro: sejamos otimistas. Por outro lado, há também quem sequer chega a pintá-lo, jurando tê-lo encontrado já desde sempre ali. Entre os dois cumes de estupidez, estende-se um vale repleto de vaidade daqueles que esmeram as pinturas, capricham nas tintas, tornando-o tão mau quanto se é precariamente capaz de imaginar. Compassivo, Brecht comentou, em um poema sobre a máscara de um demônio, que aquelas veias estufadas na fronte deveriam indicar, isso sim, o tanto que é enfadonho ser mau.
Com efeito, é preciso um bocado de vaidade para se pintarem os demônios tão malvados. Afinal, quase todos os desprazeres se devem à tolerância que temos com nossos próprios defeitos, sobretudo à nossa irresponsabilidade, à nossa e também à que, por conta da nossa, acabamos tolerando nos outros. Há uma lista tão comprida de aspectos da nossa sempiterna miséria que provavelmente deve ser bem raro que demônios cheguem a precisar se mobilizar por nós. Quem precisa da intervenção de demônios quando tão amiúde se tropeça nos próprios cadarços e em pedregulhos, pedregulhinhos?
Nem é tanto que não haja abismos; mas é que, de início e na imensa maior parte das vezes, a pusilanimidade é tamanha que sequer se chega a vislumbrar a beira deles.

terça-feira, abril 12, 2011

Vae mundo

Há um quê de ladra na ironia, que rouba a casca significante da linguagem como o lobo a pele da ovelha. De modo dissimulado, indica assim o que não consegue plenamente dizer. Há nela um quê blasfemante, pois no momento mesmo em que é compreendida, e portanto revelada enquanto tal, vitupera prometeicamente a sacralidade da linguagem.
Ladra porque sempre ilegítima: é evidente que o uso de qualquer ironia provoca desníveis entre as experiências de quem fala e ouve, escreve e lê; detona uma descamação no sentido do texto, e a principal função disso é, decerto, roubar parte do chão do leitor e de sua pose confiante de que ainda sabe sobre o que exatamente se está falando. Cria escândalo, no sentido evangélico preciso do termo. Essa desorientação pode funcionar como ensejo para um pontual esclarecimento, uma tomada de consciência da profusão de mapeamentos absurdos que, de início e sempre, precisam ser oportuna e estrategicamente tomados como razoáveis para que raciocínios os mais simples se estabeleçam. Ou sejam sequer formulados. De início e sempre, repito, porque em momento algum a proposta poderia ser remover esses mapeamentos absurdos, os quais, como crenças elementares, são condição de possibilidade de todas as tomadas de posição. Não se trata nem mesmo de esperar que alguém troque as crenças a partir das quais fala; isso seria um outro movimento, mais próximo mesmo de uma catequese, onde a ironia dificilmente seria bem-vinda. Menos catequista e mais terapêutica, a ironia deveria funcionar como a água fria que baixasse a bola de quem perdeu a dimensão da fragilidade — e, no limite, da insustentabilidade radical — do literalismo de toda e qualquer posição. Ela está a lembrar que o mapa é só um mapa. É muito mais que catequese: é conversão.
Por tudo isso, o desnivelamento não é apenas um efeito colateral da ironia, é seu princípio ativo, e quem recorre à ironia esperando ser plenamente compreendido mostra com o ressentimento da incompreensão a mera vontade da pose de engraçadinho. Como nos lembra Mann em seu ensaio sobre Chamisso, ela quase sempre significa construir uma superioridade a partir de uma carência. O engraçado e o gracejo são figuras da desgraça. Ironias plenamente compreendidas são como metáforas que se tornaram catacreses: uma experiência estéril, cristalizada, decaída, a qual, instrumentalmente, ainda que não sem certo gracejo, consegue se prestar apenas como moeda de troca num comércio entre coisas e palavras, sem contudo provocar ainda qualquer pensamento que mereça esse nome. Plenamente compreendida, seria como uma ladra que roubasse algo de que não precisa, que sequer deseja, e já lhe tivesse mesmo sido dado.
Assim como houve o bom e o mau ladrão, há a boa e a má ironia. Há o bom e o mau escândalo, provocados por boas e más ironias. Escândalo é o momento de perplexidade diante da contradição, da blasfêmia, da equivocidade. É o momento da tentação, em que a integridade do espírito é perturbada, é o momento em que se perde a confiança na estabilidade da própria ordem no interior da ordem do mundo. É quando a ordem do mundo, que espelha a ordem do espírito e nela se faz espelhar, se torna o princípio do desordenamento do espírito. O lado mau do escândalo, efeito colateral de todas as blasfêmias, elas mesmas inevitáveis, é a desintegração do que não se queria desintegrar, a serração do galho sobre o qual se senta. Em virtude de seu lado bom, entretanto, o escândalo quebra a sedimentação esterilizante do que precisa continuar vivendo. Tenta tornar uma vez mais a catacrese em metáfora. Nesse caso, o escândalo não é ocasião de queda, desgraça, desesperança, mas sim de contrição, metanóia, conversão.
Tudo isso, é claro, num conta-gotas impossível. Não se separa a boa ironia da má, tanto quanto não se separa, de direito ou de fato, o bom fármaco do mau. A ironia está para a imbecilidade como a quimioterapia para um corpo com tumores.

sábado, março 26, 2011

Carême dixit

A pâtisserie poderia ensinar à hermenêutica que a consistência a ser buscada não deveria ser considerada um fim em si mesmo, mas sim um artifício estratégico a serviço de algo maior. O que não quer dizer, é claro, que seja algo dispensável: ai daquele que for obrigado a sorver uma mousse já liquefeita! Ninguém espera, contudo, que as mousses sejam consumíveis para sempre. Por empenhado que esteja na nobre aventura de conquistar o mais perfeito ponto de uma massa, jamais ocorreria nem mesmo ao mais desvairado maître pâtissier sacrificar o sabor no altar da consistência ou a buscar uma massa imperecível, sob pena de se encontrar de repente transformado em algo perigosamente próximo de um mestre de obras.
Boas interpretações haveriam de ser consistentes como boas mousses.

sexta-feira, dezembro 24, 2010

"Are these the shadows of the things that Will be, or are they shadows of things that May be, only?"

Se Papai Noel tivesse lido Nietzsche, talvez tivesse vergonha de suas pretensas boas ações, talvez sentisse uma saudável repulsa dos comportamentos merecedores que ele procurara inspirar. Saberia que um oceano de pusilanimidade pode estar — e em geral está — por trás de muito que há de belo, certo e precioso. Saberia que a esmagadora maior parte das crianças, adultos e velhos de todas as épocas simplesmente não eram merecedores de nada além do que pena — compaixão, talvez —, e que, se chegam a fazer coisas corretas, é por puro pavor diante do Ghost of Christmas Yet to Come. A suposta conversão do velho Scrooge, que há gerações encanta corações melequentos, não passa, contudo, da culminação de sua mendacidade: egoísmo, vaidade e covardia.
Se Papai Noel tivesse lido Mauss, talvez soubesse que dar um presente é sempre roubar algo daquele a quem se presenteia. Do compromisso tácito de uma direta ou indireta retribuição da dádiva à mera legitimação da expectativa de fruição de afeto, presentear sempre foi entendido como algo… perigoso, para se dizer o mínimo. O fato de o vocábulo inglês para "presente" significar, em alemão, "veneno", deveria ser sugestivo o bastante para se suspeitar que o ancestral anglo-saxão dessas línguas modernas reconhecia a experiência de algo como um aspecto venenoso das dádivas. Ou, conforme uma interpretação menos otimista, um aspecto dadivoso dos venenos. O presenteador oculto, figura tão estimulada em nossa época, é indício sintomático desse tempo em que se tenta burlar tudo para se devorar o melhor de todos os mundos, dessa promiscuidade que faz pose para acreditar que é honesta ao afirmar cheia de afetação que seus compromissos são o de não firmar compromisso algum.
Se Papai Noel tivesse lido O. Henry, talvez entendesse que os presentes mais sábios, prosaicos como uma corrente de relógio ou um jogo de pentes, são "too nice to use just at present": pertencem a uma outra temporalidade, uma tal que nunca se ajusta fielmente às circunstâncias. São deveras uma promessa. Raramente cumprida, ou mesmo nunca cumprida como se deseja, mas não menos legítima por isso.

domingo, dezembro 05, 2010

"Cantiga para não morrer"

Só porque uma sexta pode ser melhor que um domingo, e mesmo melhor que todos os domingos de uma vida, ainda que, olhando depois, ela pareça ter sido quem os tornou tão piores. Porque as coisas mais preciosas podem, sim, perder não apenas a preciosidade, não apenas a graça, mas até mesmo o sentido; "porque é possível fazer a realidade de tudo isso sem fazer nada disso", na tabacaria do poeta ou à mesa de uma cervejaria, não importa: é sempre irreal, sim. Só porque, às vezes, o querer não querer querer dizer alguma coisa não é maior que seu contrário; mas, felizmente, isso também passa, sim.

sexta-feira, agosto 06, 2010

Nossas mentiras

Sempre se soube e sempre se esquece: limitações da linguagem freqüentemente nos lançam em variados embaraços, distorcem percepções, convencem-nos de absurdos, inauguram e alimentam expectativas e podem nos mergulhar, em casos extremos, na miséria, na angústia e até no desespero do homem diante de quem os sentidos com que se conta desmoronam no choque com um mundo que pouco tem a ver com nomes. Não apenas alguns dos grandes problemas filosóficos podem ser considerados armadilhas da uma linguagem inadaptada a tal tarefa, como tantos defendem; diversas de nossas mesquinharias, pusilanimidades mesmo, devem-se às deformações profundas que más metáforas impõem ao nosso caráter. É estranho, por exemplo, que tão pouco nos escandalizemos com a promiscuidade dos pronomes possessivos, essas palavrinhas com que, num impulso furioso, salpicamos a granel todo tipo de pensamento.
Algumas línguas guardam importantes distinções: muitas reconhecem, por exemplo por meio de afixos, uma diferença fundamental entre possessões alienáveis, geralmente conquistadas com algum esforço, e as inalienáveis. Na língua maori, a escolha entre um ou outro possessivo na expressão "tenho os olhos de minha amada" deixaria claro se estou dizendo simplesmente que meus olhos se parecem com os dela ou se por algum bom motivo os arranquei e agora morbidamente os carrego comigo. Na língua luo, clássico exemplo, ao dizer "o osso do cachorro" uma sutileza fonética há de esclarecer se me refiro a um osso que constitui o esqueleto do cão ou a um osso que ele agora se compraz em roer.
A língua yabem distingue da relação de possessão que há na propriedade de um bem (a ovelha do pastor) a especificidade da relação de possessão que há entre uma parte e seu todo (os galhos da árvore). A língua chichimeca tem pelo menos doze diferentes classes de construções possessivas. O massai, por sua vez, distingue em meio aos seus nomes aqueles que designam coisas que podem (animais domésticos, ferramentas) e aqueles que designam coisas que não podem (animais selvagens, fenômenos da natureza) ser possuídas. Em georgiano, distintos verbos nomeiam a posse de objetos animados ou inanimados.
Ao utilizar os mesmos termos e uma mesma sintaxe para descrever relações tão díspares entre nós e o mundo é muito fácil perder de vista as diferenças, afundar na indistinção. Estou convencido: uma parte considerável de nossos problemas, nos mais variados níveis, deve-se a metáforas que se tornaram catacreses.
Se posso propriamente falar em meu sapato, que pode deixar a qualquer momento de ser meu, perdido ou roubado, que posso dar, vender ou destruir, e se não é exatamente essa relação que tenho em vista ao falar de meu pé, certamente não é mais nada disso o que está em jogo quando digo meu coração, condição de possibilidade da permanência de todas as outras posses. A noção de posse, aqui, é substancialmente diferente em cada um dos casos. Apenas por uma certa falta de escrúpulos metafóricos chego a me referir ao coração com a mesma sintaxe com que me refiro a sapatos e não deveria haver tanta surpresa se aquele chega a ser pisoteado.
Quando digo meu relógio, esse objeto que me pertence e sobre cuja existência tenho tanto poder quanto se é possível ter sobre algo nesse mundo, podendo de fato fazer com que, de um instante a outro, ele simplesmente deixe de existir, patentemente não designo aí o mesmo tipo de relação que quando digo meu tempo, essa difusa responsabilidade que tenho de fazer algo com a vida, essa relativa capacidade de organizar atividades, que, se tenho em alguma medida, acaba por me ter em outra tanta, definindo boa parte do que sou. Matamo-lo, como lembra Machado, mas é ele que nos enterra.
Digo minha língua, minha cultura, minha família ou meus valores, como se de fato estivesse em uma relação com essas coisas antes da qual eu já fosse eu mesmo, o que não é de forma alguma verdade: tudo o que sou é já a partir dessas relações, das quais não posso jamais prescindir. Digo minhas idéias, ou minhas lembranças, como se pudesse trocá-las conforme minha vontade, que me devora e constitui. Há coisa menos nossa, afinal, do que o desejo?
Mesmo ateus exclamam meu Deus, mas quem diabos sabe o que isso quer dizer? Meu amor, chamam os amantes, chegando ao tom do desespero na reivindicação da posse de algo que não sabem o que é e que, na mais honesta das hipóteses, se limitam a quererem querer. A pior propriedade não é tanto a que é eventualmente um roubo: a dos amantes, ah, é invariavelmente arroubo.

quinta-feira, junho 24, 2010

ein großes Rätsel

Num pequenino texto redigido em meio à Primeira Guerra Mundial, aqueles anos que subitamente escancararam a implacável transitoriedade a que estava sujeito tudo o que se julgava digno de importância, Freud recorda certo diálogo travado ao longo de uma caminhada de verão em companhia de um jovem poeta. Este se deixava abater diante da paisagem que, não obstante a majestosa beleza, era incapaz de lhe fazer esquecer de seu futuro e inexorável desaparecimento: tudo de belo que a natureza criasse, tudo de elevado que os homens construíssem, os mais nobres sentimentos e valores, as mais doces esperanças, tudo aquilo pelo que se chegasse em algum momento a acreditar valer a pena viver, morrer e matar, tudo isso estaria de antemão, a despeito de sua altivez, inevitavelmente condenado a um desaparecimento gratuito, banal e indiferente a quaisquer desejos outrora alimentados. O psicanalista se recusa a tomar parte na melancolia do poeta. Para sua obstinada miopia monista, a exigência de imortalidade é tão somente um produto de nosso narcisismo e não tem qualquer direito de reivindicar valor de realidade. Ademais, não haveria motivos, insistiu Freud, para que a efemeridade do belo implicasse sua desvalorização.

Teria ele conseguido realmente acreditar no que dizia? Não sentiu ruborizar as bochechas quando logo em seguida confessou que o luto seria, afinal, ein großes Rätsel, um grande enigma? Diante da perda do objeto amado essa “certa medida de capacidade amorosa, chamada libido” se encontraria novamente liberada e procuraria por objetos substitutos em que ancorar, ou retornaria provisoriamente ao eu. “Contudo,” suspira Freud, “nós não entendemos o porquê de esse desprendimento da libido de seus objetos dever ser ein so schmerzhafter Vorgang, um processo tão doloroso, e até agora não somos capazes de explicá-lo por nenhuma hipótese. Observamos apenas que a libido se agarra a seus objetos e não quer renunciar àqueles objetos perdidos mesmo quando dispõe de substitutos. Isso, portanto, é o luto”.

Uma ova! Como assim “das also ist die Trauer”?! Não percebeu que sua definição não era nada senão um atestado de incompreensão? Que sua sofisticada economia de pulsões não explicava, no fim das contas, nada do que realmente importava explicar? Como é desconcertante que não tenha ocorrido a esse homem tão engenhoso colocar sinceramente em xeque seu furioso ímpeto naturalista, mesmo quando sua honestidade o levava a declarar não conseguir compreender o que na linha acima acreditava estar explicando!

A pergunta que o desconcerta, a pergunta diante da qual essa mente sempre tão prodigiosa em hipóteses se cala, é por que diabos, no fim das contas, dói. Nem Freud explicou. E dói! Ainda que haja objetos substitutos disponíveis, que sejam mesmo inumeráveis!, ainda que de modo algum a sobrevivência ou sequer a integridade do sujeito corra riscos diante da perda, ainda que se esteja perfeitamente ciente de tudo isso e que se esteja pronto a reconhecer uma miríade de imperfeições no objeto amado, ainda que se enxergue a própria infelicidade nesse amor, um punhado de insalubridades até, ainda que, enfim, seja o caso de se compreender que a dissolução do vínculo é, sob diversos aspectos, algo positivo, ainda assim mortos hão de ser chorados, deixando ou não saudade. Se a banal transitoriedade do belo é a constatação que bastava para levar o jovem poeta à desesperança, a outra face dessa moeda é a fossa do luto que se instala até mesmo na perda do que há de mais miserável.

Estar na merda é ter saudades da infelicidade.

segunda-feira, maio 24, 2010

Talvez

Na conhecida fábula de Esopo, o menino berrava “o lobo!, o lobo!” e se ria das pessoas que corriam ao seu socorro. Pura meninice ou maldade? Talvez fosse um moleque pentelho, é claro, e sentisse alguma genuína satisfação na travessura. Talvez o tédio lhe devorasse o espírito de modo mais doloroso do que lobos poderiam devorar seu corpo, e o grito de socorro fosse, de fato e a despeito da inexistência dos lobos, um real grito de socorro. Talvez — e as possíveis versões da antiga fábula se deixariam fartamente multiplicar — o menino se sentisse demasiado inseguro e tentasse se convencer, por meio de sucessivos e mal elaborados testes, que uma ajuda realmente viria se chegasse a precisar dela. Talvez enxergasse mal e os vultos do entardecer lhe atordoassem a visão. Talvez estivesse confuso e temesse lobos tão desesperadamente que quase chegasse a vê-los. Talvez estivesse deslumbrado com o poder de suas palavras e agisse assim por estar mais maravilhado com as mágicas possibilidades da linguagem do que atento à responsabilidade de seu uso. Talvez.

A moral da fábula, em sua versão moralista rasteira que atravessou tantos séculos de cartilhas escolares, é a de que o mentiroso perde seu crédito. Como se fosse sempre óbvio identificar que alguém mentiu. Como se o que se encontra em jogo nas comunicações fosse meramente uma questão de credulidade, que se ganha ou perde, até se esgotar. Como se a própria credulidade, que afinal existe, fosse efetivamente regulada por uma lógica linear e totalmente previsível de recompensas e punições. Talvez não lhe tenham ido dar socorro não tanto por lhe desacreditarem a palavra, mas muito mais por acharem-no chato e estarem já há tempos a torcer para que um lobo viesse devorá-lo. Talvez — ousemos hipóteses mais nefastas — seus próprios pais tivessem mandado um lobo até lá.

A moral da história bem poderia ser a de que não se deve repetir tantas vezes uma mesma mentira. Ou a de que se deve caprichar na mentira que se conta. Ou a de que a chatice pode ser mais perigosa que a mentira: talvez paciência seja algo mais raro, difícil e precioso do que credulidade. Na verdade, a moral da história bem poderia ser simplesmente a de que existem lobos, sim, senhor; e eles não são bichos legais.

sábado, março 27, 2010

Contra a geometria:

Porque no meio dos caminhos reais, entre os imponentes picos do maravilhosamente bom e do devastadoramente ruim, extremos cuja visão nos impressiona, entusiasma e assombra, atraindo para si quase a totalidade de nossas energias, desdobra-se incerto, sombrio e silencioso o inóspito vale do desconcertantemente péssimo, sempre pronto a devorar na banalidade de sua indiferença os alpinistas com seus sonhos, seus medos e seus barômetros escangalhados.

terça-feira, março 09, 2010

Do que pode haver de precioso

Uma vez que nosso tempo preza como nenhum outro o conforto e a fruição de estímulos prazerosos, chegando mesmo a prezá-los a ponto de os confundir com o ideal de uma boa vida, é natural que daí se siga uma demonização da dor e de toda e qualquer espécie de aflição ou sofrimento. Para um tempo em que um bom trabalho é aquele que se quer fazer, ou aquele pelo qual se é sobejamente pago, um tempo em que a boa saúde é estritamente aquela em que se podem contornar os desconfortos das doenças e prolongar a vida tanto quanto possível com o único objetivo de gozar aleatoriamente mais sensações gostosas, um tempo em que o ideal caricato de amor se desespera em busca de um monstrengo que conjugasse em um só momento estabilidade e êxtase, um tempo, enfim, em que a boa vida é aquela em que se sofreu pouco e em que a boa morte é preferencialmente anestésica, para esse tempo se anuncia a paulatina supressão da distinção entre as figuras do herói e da vítima, que tendem a se sobrepor e se confundir numa figura que época alguma julgara digna de ser cantada: um herói sem qualquer virtude notável, um herói cujo heroísmo se resume a suportar sofrimentos aleatórios que um mundo sem muito sentido lhe inflige, um herói que nada mais é do que um sobrevivente que pouco ou nada tem a fazer com a vida que carrega.

Tudo muito distinto das provações por que passavam heróis clássicos e mártires: heróis cujo heroísmo se manifestava na assunção da responsabilidade pela realização do trabalho que precisava ser feito a despeito da quantidade de sofrimento que isso pudesse causar, ou na assunção, em nome de um bem maior que sua existência, de um culpa que não era sua.

É uma indignidade típica de nosso tempo a confusão que reduz o valor das pessoas ao sofrimento por que passaram, como se fossem meramente a resistência a um mundo incompreensivelmente cruel, hostil e por vezes macabro, como se fossem enormes por terem sobrevivido ao mundo com o mérito de bactérias que resistissem a antibióticos potentíssimos, e não pelo que, a despeito de toda dor, às vezes chegam a se tornar. Ao se admirar a pura resistência material, a compaixão rouba o espaço da verdadeira admiração.

Nossos sentidos se perverteram a ponto de achar que o puro medo de cicatrizes é motivo suficiente para se fugir do que quer que seja e, como conseqüência disso, aprenderam a venerar aqueles que as carregam como criaturas admiráveis simplesmente por carregarem-nas, insultando com esse gesto tudo aquilo que pudessem ter de admirável de fato. Nossos sentidos não mais enxergam que uma cicatriz, em si e por si mesma, nunca é bela ou feia: é tudo o que se fez e faz a cada dia de todo seu contorno e sua história que pode chegar a ser belo. É todo o resto que, a despeito de um sofrimento que pode chegar ao inimaginável, se agiganta e ri desse sofrimento, ou simplesmente o ignora com certa altivez, o suporta com certa serenidade, demonstrando que o que realmente importa, a admiração que nada deve à compaixão, não se deixa reduzir a alegria e tristeza, prazer e dor.

É uma beleza que, quando surge, nosso tempo não compreende muito bem.

sexta-feira, janeiro 15, 2010

Um ano é um ano é um ano é um ano

Mesmo Temístocles, o prodigioso general capaz de derrotar toda a frota de Xerxes, pouco podia para vencer as narrativas de suas próprias memórias, que são, afinal, quase tudo daquilo que cada um é. Conforme contam as anedotas que nos chegam da Antiguidade, em vão teria o poeta Simônides lhe oferecido os segredos de uma ars memoriae: mister era sobretudo, àquela época como em muitas outras, a invenção de uma ars oblivionis.
Expiação, contudo, só mesmo pela ponta do rastelo de uma kafkiana engenhoca a rasgar na carne culpada de cada um a lista de coisas de que não se pode jamais deixar de lembrar de esquecer.

domingo, julho 05, 2009

Tour de force

A verdade não é de todo refratária a certas manipulações: omissões aqui, ênfases ali. Distorções. Como muito bem exemplifica a cartografia, às vezes é a mentira que diz a verdade, e o faz em momentos em que a própria verdade, se falasse, confundiria. Porque a verdade sempre teria coisas demais a dizer. E porque as mentiras mais abomináveis são, em geral, feitas com a verdade e, muitas vezes, com a verdade, ali cristalina, sem qualquer distorção.
A diferença entre um mapa que salva e a pior das perfídias é que esta diz meramente a verdade, de modo cru - e por isso cruel -, di-lo com a pose afetada da autoridade que só mesmo um fragmento da mais genuína verdade é capaz de oferecer, ao passo que aquele, reconhecendo-se modestamente falsificador, coze e cose o que importa, alimenta e agasalha, orienta.
A saúde de um recorte, portanto, é uma questão de torque: uma questão de momentum.

quarta-feira, novembro 05, 2008

cum grano salis

Não faz muitos meses que um amigo antropólogo, que é versado tanto nas Escrituras quanto nas bestialidades de que são capazes os homens, e que anda a estudar, salvo engano, o que há por baixo dos hábitos sacerdotais, comentou argutamente sobre a possibilidade de se justificar pela Teologia a iniciativa das ações afirmativas. Segundo ele, está tudo tradicionalissimamente documentado nos capítulos 6 e 7 do Genesis, quando, sob diviníssimas instruções, Noé proporciona a cada espécie, a partir de critérios universais e quantitativos, sua oportunidade de sobrevivência.
Mas devagar com o andor! Embora tenha o incontestável mérito de reconduzir as extravagâncias do nosso admirável mundo laico às suas bases mais tradicionais, à oportuna observação devem ser acrescentados quatro intempestivos escólios que, muito embora não a desmintam, mitigam-na (ou radicalizam-na, sob outro aspecto, conforme nossa posição em relação à arca), de modo que são de mister nesses tempos de ações afirmativas.
Em primeiro lugar, é de se fazer notar a força persuasiva que critérios quantitativos possuem nessas horas tenebrosas. Critérios quantitativos sim, e supostamente justíssimos, pois a salvação dos bichinhos, ao menos nesse caso, não exigiu ínfimo resquício de mérito individual. Não se salvaram por obras, é claro, e tampouco parecem ter sido salvos por algum tipo de predestinação. Tudo se passa como se, no fim das contas, a salvação randômica fosse o modelo mais verossímil de justiça em tempos de desespero.
Em segundo lugar, quando a porca torce o rabo — e ela sempre o torce —, os critérios quantitativos não são tãããão exclusivamente quantitativos assim, e logo se descobre que some animals are more equal than others. Porque para cada sete casais de animais puros (ex omnibus animantibus mundis tolle septena septena), um único casalzinho impuro foi aceito (de animantibus vero non mundis duo duo). O Genesis nada conta sobre os protestos dos leitões, por exemplo, mas é de se deduzir que tenham gritado até os pulmões estarem estufados de chuva.
Em terceiro lugar, e isso talvez soe politicamente incorreto, é muito importante observar que a retórica do quantitativo não se mostra bazofiadora apenas quando se saca da manga a distinção entre bichos puros e impuros (e qual mente perturbada ter-se-ia esquecido dela?!), mas os septena septena e os duo duo são apanhados em masculum et feminam (vão dizer que vocês acharam mesmo que a arca era lugar pra sodomia?!). Os impuros, enfim, até são salvos na razão de 1/7, mas os bichos de cardápio desnaturado, o que decerto incluiu vegetarianos...
Em quarto e último lugar, nunca pode ser esquecido que, ainda que a salvação quantitativa seja uma alternativa com precedentes bíblicos, uma tal idéia só entra em circulação quando o próprio Deus se arrepende de ter criado o homem na terra (pænituit eum quod hominem fecisset in terra), quando Seu coração se enche de profunda dor (et tactus dolore cordis intrinsecus); quando a coisa fica preta, enfim, e o mundo está prestes a acabar.

quarta-feira, maio 30, 2007

A desventura dos batismos

O bom nome deve dar a conhecer a coisa nomeada; mas o que é esse conhecer? As descrições sempre padecem de uma tensão fundamental entre o impulso analítico e o genético: aquele, ávido por diferenciações, tenta fazer justiça a todas elas, mas acaba eclipsando o que há de essencial; esse, por outro lado, precisa deixa escapar algumas nuances e, sob o olhar do analítico, tornou-se até mesmo grosseiro, mas, com suas desajeitadas generalizações e metonímias, põe em jogo a radicalidade da questão.
Se por um lado a enumeração extensiva de propriedades não faz surgir a essência do definido, por outro a indicação da raiz é facilmente ignorada pelo glutão que se perde na admiração dos exuberantes e inumeráveis frutos, de variadas tonalidades, dimensões, texturas, aromas e sabores. O glutão deixa de enxergar a árvore tão logo embrenhe seu focinho nos galhos a devorar a diversidade dos frutos, pois se esqueceu de que as diferenças só podem ser especificadoras quando se reconduzem a gêneros próximos. Somente a generalidade do gênero enraíza e radicaliza a especificidade das diferenças. Sem o lastro genético, as propriedades não indicam nada de essencial: apenas mascaram-no.

sexta-feira, novembro 24, 2006

Da delicadeza

Talvez a brutalidade do século XX seja o fator responsável pela suprema delicadeza de nosso tempo. Tal brutalidade é hoje incompreensível. A palavra evoca uma vaga e rarefeita idéia que, embora não mais comunique efetivamente uma experiência, ainda cumpre bem o seu papel nos discursos de lamúria e de escândalo. Se antes de sua exaustiva repetição tal idéia foi de fato compreensível um dia, ou se pelo menos sua palavra se prestava a indicar a positividade de uma ocorrência nefasta, esse decerto não é mais o caso para as gerações contemporâneas, que não mais são capazes de extrair dela qualquer sentido, pois o mundo se tornou delicadíssimo, a despeito ou por causa de sua história recente e tão supostamente brutal.
Delicadeza que se expressa na afetada reivindicação por respeito e na virtualmente ilimitada capacidade de compreensão de uma suposta alteridade. O mundo se tornou de fato tão delicado que desapareceram como num piscar de olhos os diversos códigos de delicadeza que as gerações mais antigas cultivaram a um preço e esforço que mal conseguiríamos conceber. Hoje é delicado ser informal. Se tudo mergulhou na aura da informalidade — da linguagem aos sentimentos, passando pelos gestos e gostos, vestuário e compromissos — não é exatamente por termos nos embrutecido, mas por termos nos tornado delicados de fato, num sentido que causaria náuseas a homens que iam de cartola ao teatro e mulheres que usavam espartilho. Pois então a delicadeza era um modo possível de comportamento, e não uma propriedade das pessoas. O sentido de códigos de delicadeza era a explicitação não de uma natureza simples e obviamente delicada, mas da cultivada capacidade de agir delicadamente. Somente nesse sentido a delicadeza poderia aparecer como algo gracioso, pois tornada essencial dificilmente se pode diferenciá-la da mera frouxidão.
Não precisamos mais agir delicadamente porque nos tornamos delicados de fato. É como se os lábios não mais precisassem sorrir graciosamente porque todo o resto já sorri estupidificado. Com mais um pouquinho de dedicação a humanidade realizará em breve o supremo ato de delicadeza, e dará uma generosa gorjeta aos seus carrascos.