Descaminhos: agosto 2011

segunda-feira, agosto 22, 2011

Deuses em fuga, vícios travestidos

É bem conhecida a história da fuga dos deuses, na qual Heine descreve a desdita das antigas divindades, que repentinamente se encontraram obrigadas a buscar refúgio nos confins de um mundo em processo de cristianização. Contudo, o processo contrário, ainda que mais afim às farsas do que às teogonias e epopéias, é ainda mais notável.
Uma vez que, em meio à fuga, as divindades deixaram para trás seus antigos templos, ídolos e paramentos, os mesmos não tardaram a ser usurpados por vícios errantes e por velhos demônios, os quais não hesitaram em, do alto de seus novos altares, estabelecer acordos variados e oportunistas com o mundo e garantirem assim uma sobrevivência burlesca, expediente que uma verdadeira divindade jamais teria podido sequer cogitar. Heine nos conta as tristes desventuras dos velhos deuses, mas nada diz sobre farsa que desde então se encena em seus santuários.
É por isso que, para todas as virtudes, quase sempre vale o que, no conto de Machado, o Diabo explicara a Deus: rainhas celestiais, cujos mantos de veludo são rematados em franjas de algodão. Nem mesmo o próprio Nietzsche, sempre tão rico em imagens, produzira uma melhor.
O que não chega a ser propriamente novidade, mas vale hoje como talvez nunca antes: nesses tempos obscuros, em que a miséria mais profunda sói se apresentar travestida de excessos, moderação quase sempre significa o sacrifício da verdade no altar do oportunismo, esse soberbo sacrário erigido sobre a toca morna da covardia. Lê-se, aos pés do ídolo, o usurpado nome da titânide Métis.