Descaminhos: outubro 2005

sábado, outubro 29, 2005

Revolucionários

O caminho mais curto - e mais nefasto - para se acabar com um fato injusto é esquecer o conceito de justiça.
"For here is the chief and most confounding objection to excessive scepticism, that no durable good can ever result from it; while it remains in its full force and vigour. We need only ask such a sceptic, What his meaning is? And what he proposes by all these curious researches? He is immediately at a loss, and knows not what to answer. A Copernican or Ptolemaic, who supports each his different system of astronomy, may hope to produce a conviction, which will remain constant and durable, with his audience. A Stoic or Epicurean displays principles, which may not be durable, but which have an effect on conduct and behaviour. But a Pyrrhonian cannot expect, that his philosophy will have any constant influence on the mind: or if it had, that its influence would be beneficial to society. On the contrary, he must acknowledge, if he will acknowledge anything, that all human life must perish, were his principles universally and steadily to prevail. All discourse, all action would immediately cease; and men remain in a total lethargy, till the necessities of nature, unsatisfied, put an end to their miserable existence. It is true; so fatal an event is very little to be dreaded. Nature is always too strong for principle. And though a Pyrrhonian may throw himself or others into a momentary amazement and confusion by his profound reasonings; the first and most trivial event in life will put to flight all his doubts and scruples, and leave him the same, in every point of action and speculation, with the philosophers of every other sect, or with those who never concerned themselves in any philosophical researches. When he awakes from his dream, he will be the first to join in the laugh against himself, and to confess, that all his objections are mere amusement, and can have no other tendency than to show the whimsical condition of mankind, who must act and reason and believe; though they are not able, by their most diligent enquiry, to satisfy themselves concerning the foundation of these operations, or to remove the objections, which may be raised against them."
Hume, por mais surpreendente que pareça num primeiro momento.

quinta-feira, outubro 27, 2005

A tolerância demoníaca

As multidões costumam pensar as forças do Mal como forças de dissociação. A imagem não é de todo falsa, mas tomai cuidado com ela, porque nem tudo o que corrompe a integralidade o faz por dissociação. Tende certeza de que em uma porca bricolagem de fragmentos de mundo um diabo se realiza muito mais do que em simples rupturas.
Por isso, prestai atenção e tomai cuidado com as vozes que, por toda parte, camufladas de pregações de respeito às diferenças, semeiam uma degenerada indiferença, uma cancerígena tolerância, pois existem dois caminhos para se conviver com a alteridade: a mútua colonização e a mútua aniquilação. Vós escolheis. A nobre compreensão da alteridade é sempre uma agonia, e é na diferença inefável e irreconciliável, nas sobras incompreensíveis, naquele certo desajuste incorrigível, lá é que habita o nobre respeito e a amizade.
Assim, se um tal vos diz com sorriso demente: ‘eu vos compreendo totalmente’, não hesiteis: atirai-lhe indignados no focinho uma sonora bofetada.

quarta-feira, outubro 26, 2005

"man verdient wenig Dank von den Menschen, wenn man ihr inneres Bedürfnis erhöhen, ihnen eine große Idee von ihnen selbst geben, ihnen das Herrliche eines wahren, edlen Daseins zum Gefühl bringen will. Aber wenn man die Vögel belügt, Märchen erzählt, von Tag zu Tag ihnen forthelfend, sie verschlechtert, da ist man ihr Mann, und darum gefällt sich die neuere Zeit in so viel Abgeschmacktem. Ich sage das nicht, um meine Freunde herunterzusetzen, ich sage nur, daß sie so sind, und daß man sich nicht verwundern muß, wenn alles ist, wie es ist."
Goethe, num momento de desabafo.

quinta-feira, outubro 20, 2005

Os niilistas e suas palavras

Há endemoninhados que gritam por aí, por todo lugar, que a verdade é plural. E dizem com orgulho, alvissareiros, poder-se-ia até mesmo falar: proclamam fazendo pose de ungidos. E de fato acreditam no que expressam, daí serem tão perigosos. Os endemoninhados amam o que dizem, e amam com uma tal passionalidade que sequer são capazes de desconfiar de que estão a amar meras palavras. Não vêem, em meio às paixões furiosas, que nada estão a pensar.
Talvez ajudasse — o conselho é de Schopenhauer — caso se dedicassem ao aprendizado de línguas estrangeiras. E eu acrescento: geometria, meus filhos! Línguas estrangeiras ajudam a aprender a separar as palavras dos conceitos que elas representam; a geometria, a compreender a consistência intrínseca de um conceito; e aqueles que de ambas as operações não são capazes se encontram prestes a acreditarem que o fato de gritarem a plenos pulmões alguma coisa como ‘eu concebo um círculo quadrado!’ seja o bastante para que estejam a conceber algo.
O exorcismo, nesse caso, consiste em mostrar ao possesso que não obstante possa juntar palavras tanto quanto lhe apraza, não pode fazê-lo com conceitos. Não importa a quantidade da pirraça: que ele esperneie, grite, urre, arranque os cabelos, role pelo chão, chore, gema, repita a noite inteira e faça os amigos repetirem, e faça mesmo o mundo inteiro repeti-lo, e nisso acreditar, e que pessoas se matem por essas quimeras — o conceito do círculo continuará pela eternidade incompatível com o conceito do quadrado, ouvidos moucos para toda essa falta de compostura, não importa quantas vezes lhes mudem os nomes ou os declarem unidos. Words, words, words.
O mesmo vale com a verdade. O plural da palavra é truque simples da nossa gramática; o plural do conceito, uma quimera.
Um niilista é um moço endemoninhado que vos fala como que de círculos quadrados.

Os que escrevem com palavras

É claro: todo aquele que escreve, fá-lo com palavras. Poucos, contudo, entendem o significado dessa operação: apenas esses podem e devem cultivar o perspectivismo.

segunda-feira, outubro 17, 2005

Do Horário de Verão

Aproximamo-nos do verão.
Os dias amanhecem mais cedo no verão. As noites são menores. O ar é mais quente, as pessoas mais rápidas, os sorrisos mais estúpidos, os cardápios são mais leves no verão.
O verão é o tempo dos maricas.

O auto-elogio da estultícia

É curioso observar que sempre que se está a discutir sobre inteligência uma alma jornalística se ergue com voz de profeta descendo do monte e profere:

— É preciso lembrar que inteligência não é o mesmo que erudição… — e todos se entreolham com ar de quem se percebe idiota e balançam a cabeça como sinal de aquiescência irrestrita.

A observação insinua que uma é algo muito importante e admirável enquanto a outra não passa de papagaíce. É claro, é sempre por demais conveniente se lembrar dessa distinção quando se supõe inteligente e se é incapaz de cultivar o espírito. Termina-se por reproduzir, enfim, essa odiosa imagem da nobreza e dignidade da ignorância.

Vale uma voz conciliadora: inteligência sem erudição é vazia, erudição sem inteligência é cega.

sexta-feira, outubro 14, 2005

Por que ler os clássicos?

Sim, é verdade que alguns assim chamados artistas populares conhecem bem a natureza humana. Concedei, contudo: por que não preferiríamos a esses papagaios aqueles que a inventaram?

quinta-feira, outubro 13, 2005

Esclarecidamente

Tende em mente: a essência do demônio é adverbial.

Blablablices

Aqueles que acham coisas demais não devem ser ouvidos - não percai vosso tempo. O achado é sempre outro dentro em breve, tal como a importantíssima primeira página dos jornais que embrulha peixes na feira do dia seguinte.

domingo, outubro 09, 2005

Effectûs cognitio à cognitione causae dependet, & eandem involvit

Se um néscio vos diz:

Pássaros verdes não podem mais ser engaiolados!

Respirai fundo e sorride-lhe.

— Responda-me, bom amigo, se tua sinceridade to permitir, — perguntai-lhe capciososcom quantas ditosas e inumeráveis cores o teu pássaro apareceria à criança que ainda não aprendera o ‘verde’?

sexta-feira, outubro 07, 2005

Das traduções

Uma má tradução reduz, uma boa tradução educa. A má elimina a tensão entre as línguas, a boa a desperta. Um mau tradutor é um comunicador, um bom é um mensageiro. Aquela informa, esta dialoga.

O mau tradutor dissolve no familiar o que é estranho, o bom se torna familiar do estrangeiro. Aquele conhece muitas palavras e tem boa memória, este se esquece metodicamente de si porque aposta em se reencontrar no avesso da estrangeiridade.

Uma má tradução se deve à fama do texto; uma boa, à sua dignidade. A má tradução se reduz a comunicar conteúdos aos que ignoram o original — é socialista; a boa educa, tomando parte nos desdobramentos da missão daquilo que se destina, pela altivez de sua própria natureza, à universalidade — é aristocrática.

quinta-feira, outubro 06, 2005

Heimweh

Saudade do lar — assim definiu Novalis a Filosofia. Um impulso por se fazer por toda parte em casa — explicou em seguida. É isso: a filosofia exige um quê de estrangeiridade. De Aristóteles a Adorno, passando por Descartes, Spinoza, Hegel e tantos muitos outros, estamos é repleto de histórias de filósofos constrangidos pelos sotaques carregados de suas terras natais, ou obrigados a reencontrar a vida em uma nova cultura. A estrangeiridade da Filosofia não é apenas uma metáfora poderosa, é também um dado histórico, afinal.
Fazer-se em casa por toda parte, primitivo impulso de colonização, tornar o outro parte do mesmo, em uma idéia: dom(us)-esticar. Por essa razão Odisseu é o padroeiro de todos os filósofos, o mais eloqüente ícone disso que é ou foi a Filosofia. O impulso de ir além sendo norteado pela saudade da pátria. Um dia o viajante chega em casa, retorna à mesmidade, mas ele próprio já não é mais totalmente o mesmo, pois se alterou junto à alteridade que domesticou. Seu regresso torna a casa mais rica, repleta de experiências outras que coletou, que iluminam e alteram a mesmidade. Para tanto, contudo, é preciso infidelidade para consigo; em algum grau, esquecimento de si.
Em contexto totalmente diverso, Goethe disse substancialmente a mesma verdade: aquele que não conhece línguas estrangeiras, não conhece nem mesmo a própria língua. É isso: a estrangeiridade é a mediação necessária, o espelho negativo no qual Calvino disse que o viajante reconhecia o pouco que era seu descobrindo o muito que não tivera e que não teria.

domingo, outubro 02, 2005

La momia de la filosofia

"La filosofia se murió hace mucho tiempo — su momia y su esqueleto, desde hace generaciones y generaciones, se enseña a las gentes en las cátedras de filosofia de tal a tal hora. Lo que en esas cátedras se decía era más o menos ingenioso, preciso, ameno — pero no era nada que en última instancia nos importase. Aquello estaría mejor o peor — no iba con nosostros. Ahora bien, la filosofia es algo que, si es filosofia, tiene por fuerza que suscitar en nosotros terror, entusiasmo, desazón, curiosidad, profunda delicia, exaltación. Eso es lo que se produce en nuestra vida en sus momentos culminantes, cuando el vivir se estira, se acrece y siendo vivir es más que vivir. La filosofia, si es algo de verdad, no por simple convención y ganas de hablar, si es algo no puede ser una gris y nula cosa que pasa en las cátedras sino algo que pasa en cada uno de nosotros, que es cada uno de nosotros.

Pero si alguien es hoy capaz de hacer una filosofia, de filosofar en ese único auténtico sentido, esto es, dicho concretamente, sin ocultación, sin atenuamiento, se es capaz de filosofando con el mayor rigor hacer llorar, y hacer reir y hacer estremecerse alos oyentes, no por capricho, no por artificio, pura y simple, y rigorosa y exclusivamente filosofando ¿qué se diría de él? ¿Qué cara pondrían las gentes? ¿Qué extrañeza no sentirían y qué espanto y que risa, viendo que de pronto, la momia, el ridículo esqueleto que se enseñaba en las cátedras y que ‘no iba con nosotros’ comenzaba a moverse de verdad y a mirar y a ver y hacer ver y a decir, decires terribles, decires dramáticos, decires joviales que se apoderaban de nosotros, que nos poseían como posee a cada cual su propria y personal vida, por tanto que casi desde el primer instante entraba en nosotros con violencia a la vez dolorosa y deliciosa y se quedaba allí, dentro de nosotros, para simpre — es decir, que cada día la filosofia, al concluir la lección, no se quedaba en la cátedra, como un ave disecada en el museo de historia natural, sino que ‘iba con nosotros’?"

Ortega y Gasset