Descaminhos: novembro 2005

terça-feira, novembro 22, 2005

Os insultos do nosso tempo

Quando quiserdes insultar com discrição, o melhor caminho é vos mostrardes surpresos pelo destinatário de seu elogio cumprir exatamente o que dele se espera. Poucos ouvidos estarão prontos para reconhecerem o insulto, é verdade, mas o prazer de insultar é egoísta e quase indiferente ao fato de o insultado conhecer seu papel: muitas vezes até, bem o se diga, o insulto é ainda mais aprazível, por si mesmo justificado e redimido, quando passa invisível pelos ouvidos bestificados.
Estamos no tempo sombrio em que o desempenho das funções essenciais arrebata corações. Seria engraçado – insultante, na verdade - dizer que um determinado piloto de aeronaves é um bom piloto apenas porque é capaz de decolar, pilotar e pousar sem levar à morte dezenas de pessoas. Dizei que uma comida é boa porque alimenta bastante e que aquela pedra é sensacional porque se pedrifica exemplarmente!
A máxima destinação nunca se esgota no mero exercício de uma função – ainda que esse exercício tenha se realizado de forma numericamente superior ao ordinário. Afinal, um escritor que escreve bem é só um tantinho melhor – se chegar a ser algum tantinho, enfim - do que um imbecil diligente em sua imbecilidade.

Uma história mal contada:

"Os deuses jamais desculparam totalmente os homens do crime de Prometeu. O filho de Jápeto, ao roubar o fogo sagrado do Olimpo, deu-nos o que se costuma chamar de nosso maior tesouro: a razão.
Mal se percebe com clareza a terrível vingança de Atena, que furiosa e não satisfeita em enviar Pandora aos homens, tramou algo ainda infinitamente mais cruel.
A deusa de glaucos olhos, no fundo bastante ressentida por não dispor dos encantos de Afrodite e se ver condenada a só ser notada pela sua inteligência, despejou sobre a humanidade, aproveitando o ensejo oferecido pelo roubo de Prometeu, seu mais profundo ódio contra sua condição de mulher mal-amada.
Que o fogo roubado incendiasse os homens incessantemente; e eis o requinte do sadismo feminino: que idiotizado, o homem ainda se julgasse especial e enchesse o peito de orgulho da sua condição de churrasco dos deuses.
E no dia seguinte, ao despertar de um sono agitado, um velho sábio afirmou: 'tudo é água!'. O castigo dos deuses fora entregue.
Assim nasceu a Filosofia."

segunda-feira, novembro 14, 2005

O Ödipuskomplex do Racionalismo

Ao contrário do que um certo moralismo afetado se apressaria em pregar, a vileza nunca representou ameaça à virtude. Não, tampouco um crime ameaça a legislação que o condena. Antes disso: a sua existência a justifica.
Ab-surdus: aquilo que está para além de nossa surdez, nossos sentidos, lá onde eles já não mais alcançam. Sua presença, contudo, nunca foi um risco à audição. Muito pelo contrário: o absurdo sempre fora a derradeira fronteira que demarcava rigidamente um campo de positividade. A impossibilidade de qualquer outra possibilidade, anulação das estruturas de constituição de um discurso, o limite depois do qual todas as narrativas haveriam de se dissolver.
Ao estabelecer que, não importando de onde se partisse, nem tudo poderia ser dito, o absurdo era o espaço da negação, da grande interdição, que submetia cada voz a uma determinação que, em lhe ultrapassando, concatenava-a à dignidade e ao valor de uma eternidade. Negativo comum de todas as vozes, a presença do absurdo era o campo comum de todas as perspectivas, onde todas se faziam irmãs através de suas negações. Sim, ponto arquimediano às avessas, que fundava indiretamente a possibilidade e a dignidade do que seria dito ao demarcar aquilo que não seria: raductio ad absurdum.
Um dia, contudo, quando se quis alterar o mundo, os homens absorveram o absurdo dentro da racionalidade e, de um só golpe, aniquilaram ambos. O absurdo não foi superado, mas suprimido. Condicionando o absurdo às determinações de uma dada perspectiva, tornaram-no uma ficção qualquer, um capricho regional, quase uma gracinha, já sem qualquer autoridade sobre as outras aberturas de sentido. Órfãs e ­­­- vale até mesmo dizer, com um quê de psicose -, as narrativas todas se espalharam em infinitas direções: não havia mais lugares proibidos e, conseqüentemente (o que já era tarde demais para que compreendessem), não havia mais justificativas para que se assentassem em lugar algum.
Sim, puro nomadismo: e ainda há quem se orgulhe de ter voltado à idade das pedras.
O absurdo foi o pai da razão.

sábado, novembro 12, 2005

Isso que também se chama amor...

"Pour toi mon amour

Je suis allé au marché aux oiseaux
Et j'ai acheté des oiseaux
Pour toi
Mon amour
Je suis allé au marché aux fleurs
Et j'ai acheté des fleurs
Pour toi
Mon amour
Je suis allé au marché à la ferraille
Et j'ai acheté des chaînes
De lourdes chaînes
Pour toi
Mon amour
Et je suis allé au marché aux esclaves
Et je t'ai cherchée
Mais je ne t'ai pas trouvée
Mon amour"
Jaques Prévert

sexta-feira, novembro 11, 2005

A Experiência e o Perigo

Sim, toda experiência é interpretada. Não, as experiências não são apenas interpretações.
Reduzir experiências a interpretações é se esquecer do perigo, é ser etimologicamente imbecil.

Como motivar um inseto?

Se uma mosca está presa em uma garrafa e, por algum motivo, crê-se que de lá ela deve sair, ou bem ela irá para uma outra garrafa, ou bem para o grande mundo em que todas as garrafas estão contidas. Nesse último caso, o salvador da mosca precisa trabalhar com a premissa de que há um suporte último e fundamental em que todas as garrafas se apóiam. Naquele primeiro, por outro lado, o nosso herói precisa ser capaz de dizer, por algum critério real, que uma garrafa pode ser dita melhor que a outra. Tanto em um caso quanto em outro, consegue-se salvar o inseto.
Caso contrário, se as garrafas são infinitas e incomensuráveis e nenhuma imagem comum de mundo as fundamenta, nada, nada nessa já então maldita existência poderia justificar que a mosca procurasse voar para fora de sua garrafinha.
Qualquer palavra proferida, principalmente a que se vendesse como filosófica, já valeria tanto quanto um relincho.

sexta-feira, novembro 04, 2005

Pequena Grande História dos mundos

Não se trata de lamentação. Compreendei, é importante: houve duas, e não apenas uma queda.
Lá, in illo tempore, no tempo mítico em que tudo era atualmente uno, não havia signos. Esses só existem depois da primeira queda, depois do primeiro fruto da árvore do conhecimento, quando uma fratura se instaura. O Bom e o Mau aparecem, o conceito e o objeto, essência e aparência não mais coincidem.
Veio então o tempo em que coisas eram coisas e palavras eram palavras, e que a realidade, portanto, era algo não só independente de suas descrições como também a pedra de toque na avaliação de todos os nomes. O homem decaído ganhou uma tarefa clara: encontrar o verdadeiro nome do mundo, chave de compreensão genética de toda a realidade e de redenção, retorno à unidade fundamental.
Os filósofos, contudo, não encontraram o nome do mundo e fizeram uma descoberta de uma só vez genial e diabólica: não havia mundo para além dos nomes, nenhuma realidade para além de suas infinitas descrições. Eis a segunda queda. Num perverso sentido, uma unidade é reconquistada, mas está às avessas. Uma vez mais coincidem a palavra e a coisa, mas agora uma diferença fundamental e irrevogável se instala: a coincidência se deve à própria aniquilação das coisas, sua redução aos seus nomes. Os filósofos descobrem que só o que há são imagens do mundo, incomensuráveis entre si, e todos os nomes são tão somente efeitos das potencialmente infinitas e essencialmente contingentes imagens do mundo de onde foram gerados.
Orgulhosos de suas descobertas, que permitem aos mais incautos fazer chacota dos antepassados que entregaram inúmeras gerações na já então absurda tarefa, os filósofos não mais percebem que a segunda queda eliminou toda promessa de redenção que se abrira após a primeira. Tempo de esquecimento, não há mais saudades de casa, não há mais tarefas. Tudo o que há são palavras divertidas e essencialmente equivalentes.
Não, não haverá uma próxima queda. Nada há depois do esquecimento. Para os que ainda não se esqueceram completamente, contudo, há uma e somente uma tarefa fundamental.

quinta-feira, novembro 03, 2005

A Filosofia no Séc. XX

Todos nos lembramos da história do parvo e vaidoso rei que, tendo-lhe sido prometidos novos e mágicos trajes, que apenas os mais inteligentes olhos enxergariam, desfilou nu pela corte por não ousar confessar sua suposta estupidez. Quando crianças, todos nós achamos muita graça do ao mesmo tempo néscio e medroso silêncio que se fez em torno do monarca, da hesitação coletiva em declarar o que já estava muito claro.
A fábula é bastante precisa: foi uma criança que deu o primeiro passo e bradou, com toda a coragem dos que pouco têm a perder, que o rei estava nu, pelado!, desencadeando, após alguns instantes de hesitação, a sonora, descontraída e um tanto quanto estúpida gargalhada do povo.
Por inúmeras gerações, a história encantou crianças de todas as terras, crianças maravilhadas com a audácia do pequeno herói e envaidecidas com a idéia de que foi justamente um pequenino o que teve, ao que parece, a coragem de dizer o que todos já sabiam. Os adultos, contudo, deveriam compreender, ao contar essa história, que absolutamente não se trata de coragem, mas só e tão somente da explosiva combinação de inocência e irresponsabilidade.
Ora, ninguém jamais ouviu o que aconteceu com o reino após o divertido evento. Não me tenhais mal. É compreensível – e é até mesmo louvável – o gesto da criança. Afinal, se as coisas são como são, alguém precisa dizê-lo. No entanto, o ridículo – não obstante não menos compreensível – é a reação da multidão.
Não sejais palhaços! Antes de rirdes de um rei pelado, tende por perto um bom alfaiate (bem como o valor justo a pagar por trajes reais).

terça-feira, novembro 01, 2005

literatura pequena

Há uns tantos por aí que encontram na suposta condição de minoria o mote para uma carreira medíocre. Da arte à política, passando pelas coisas do pensamento, a defesa de uma causa oprimida é sempre um bom pretexto para se camuflar o freqüentemente precário talento e a invariavelmente torpe disposição do espírito. O oprimido ressentido é uma espécie peçonhenta que em nenhum momento se dispõe a se apropriar da cultura que lhe domina; não!, ele prefere ignorá-la, expelir subprodutos, encarcerar-se para sempre nos limites do kitsch e vangloriar-se de sua franca incompetência para competir em pé de igualdade com aquilo que lhe oprime. Tivesse um espírito mais nobre e algum talento para sua atividade, haveria de se vingar com engenho e bom gosto, apropriar-se dela para ironizá-la, pervertê-la de dentro e, em corrompendo-a, enriquecê-la.
Contudo, essa é a tarefa dos nobres em sua sutileza. O que se encontra, ordinariamente, passa longe de apropriações. ‘Por que se arriscar a montar o cavalo, quando se pode tentar envenená-lo?’, assim pensam os ressentidos. Proliferam-se como mofo as vozes das minorias enquanto minorias, a lamentação esverdeada dos rastejantes que, com aversão metonímica, do ódio contra a opressão vão ao ódio contra a própria grandeza sem desconfiarem que em sua estupidez trabalham contra si mesmos e contra todos.
Numa palavra: fora tanta afetação! No dia em que a mulher for menos mulherzinha; e o gay, menos veado; e o negro, menos crioulo; e o idoso, menos velhinho; e os pobres, menos coitados; e a existência, em geral, menos carnavalesca, então talvez todos sejam capazes de tomar parte, desde suas especificidades engrandecedoras, na unidade do projeto de nossa cultura.

Dos Pactos

Posto que não somos deuses nem demônios, estamos sempre a serviço de algo que em nós não se esgota. Podemos está-lo, em termos do século XVII, adequada ou inadequadamente, isto é, podemos ser também a causa da causa que e por que somos, ou simples e blablablentemente desencadear efeitos com a irresponsabilidade de toda parvoíce.
Não se trata, então, de empenhar ou não a própria alma, uma vez que ela está sempre em jogo. Toda a questão é saber com que tipo de forças se está tratando e, sobretudo, de que espécie de moeda se constitui o cacife disponível.