Descaminhos: maio 2010

segunda-feira, maio 24, 2010

Talvez

Na conhecida fábula de Esopo, o menino berrava “o lobo!, o lobo!” e se ria das pessoas que corriam ao seu socorro. Pura meninice ou maldade? Talvez fosse um moleque pentelho, é claro, e sentisse alguma genuína satisfação na travessura. Talvez o tédio lhe devorasse o espírito de modo mais doloroso do que lobos poderiam devorar seu corpo, e o grito de socorro fosse, de fato e a despeito da inexistência dos lobos, um real grito de socorro. Talvez — e as possíveis versões da antiga fábula se deixariam fartamente multiplicar — o menino se sentisse demasiado inseguro e tentasse se convencer, por meio de sucessivos e mal elaborados testes, que uma ajuda realmente viria se chegasse a precisar dela. Talvez enxergasse mal e os vultos do entardecer lhe atordoassem a visão. Talvez estivesse confuso e temesse lobos tão desesperadamente que quase chegasse a vê-los. Talvez estivesse deslumbrado com o poder de suas palavras e agisse assim por estar mais maravilhado com as mágicas possibilidades da linguagem do que atento à responsabilidade de seu uso. Talvez.

A moral da fábula, em sua versão moralista rasteira que atravessou tantos séculos de cartilhas escolares, é a de que o mentiroso perde seu crédito. Como se fosse sempre óbvio identificar que alguém mentiu. Como se o que se encontra em jogo nas comunicações fosse meramente uma questão de credulidade, que se ganha ou perde, até se esgotar. Como se a própria credulidade, que afinal existe, fosse efetivamente regulada por uma lógica linear e totalmente previsível de recompensas e punições. Talvez não lhe tenham ido dar socorro não tanto por lhe desacreditarem a palavra, mas muito mais por acharem-no chato e estarem já há tempos a torcer para que um lobo viesse devorá-lo. Talvez — ousemos hipóteses mais nefastas — seus próprios pais tivessem mandado um lobo até lá.

A moral da história bem poderia ser a de que não se deve repetir tantas vezes uma mesma mentira. Ou a de que se deve caprichar na mentira que se conta. Ou a de que a chatice pode ser mais perigosa que a mentira: talvez paciência seja algo mais raro, difícil e precioso do que credulidade. Na verdade, a moral da história bem poderia ser simplesmente a de que existem lobos, sim, senhor; e eles não são bichos legais.