Descaminhos: agosto 2006

sábado, agosto 05, 2006

Da impiedade dos bonzinhos

O definhamento do espírito atinge o limite de seu perigo quando os demônios colocam os homens decentes a seu serviço. Porque quando um homem de bem, o cara bonzinho, bacana mesmo, aquele que é um bom colega, decente pai de família, trabalhador honesto, sujeito em tudo correto e confiável, por todos respeitado, que nunca incomodou os vizinhos e foi até muitas vezes sinceramente prestativo, quando esse cara burocraticamente "muito legal" perde a autonomia de seu espírito ele se torna um lacaio da banalidade do mal, e isso sem que deixe de ser todo aquele "muito legal" que sempre foi. E é aí que está o grande perigo.
Às vezes os demônios corrompem o espírito daquele que, em suas práticas cotidianas, sempre foi e continua sendo incorruptível. E aí se instala um abismo, abismo que reduz a virtude ao senso de correção, reduz o coração sensível à mente honesta, a justiça à legalidade e a caridade ao altruísmo: abismo demoníaco, cuja radicalidade é se tornar tão mais invisível quanto mais se aprofunda e suas margens se distanciam.
Os crimes jamais ameaçaram o sentido de justiça: o que o ameaça é sua redução à legalidade. E é por causa desse abismo que as pessoas meramente corretas, honestas e fraternas são muito mais perigosas do que a canalha oportunista. O oportunista sabe o mal que faz e o faz de modo deliberado; embora seja moralmente desprezível, não é espiritualmente perigoso. Ele faz o mal porque quer fazê-lo, porque não se importa ou porque o deseja — e ainda que se suponha que o criminoso não seja capaz de evitar seu crime, ele há de não ser criminoso sempre. O sentido mesmo de seu oportunismo implica que ele o seja apenas quando lhe convém.
Enquanto isso, aquele que é politicamente correto não o é porque o quer e não pode deixar de sê-lo: sua convicção é a do herói, mas seu heroísmo é burocrático. Ele faz o que tem de ser feito, mas raramente tem de fazer o que faz. E assim ele é o próprio berço do mal que não enxerga, o ninho que aquece os ovos da serpente que ele é incapaz de compreender. Seu espírito dormente não percebe o abismo de seu definhamento e lá mergulha sorridente, sem sequer notar que cai.