Descaminhos: agosto 2005

segunda-feira, agosto 29, 2005

Dostoievski, o Gênio e os Vermes

Há uns anos um sujeito chamado Jan Hirschmann, pesquisador da Universidade de Washington, publicou um trabalho que garantia que Mozart teria morrido pela boca. O compositor - morto em 1791 - teria apresentado os sintomas de triquiníase, doença causada pela ingestão de carne de porco contaminada por vermes do gênero Triquinela.
É irônico, sugestivo e mesmo grave pensar em um gênio morto pelos vermes de uma carne de porco. E a pergunta surge: um verme que mata um Mozart continua sendo apenas um verme?
Refleti vós, pois a resposta à jocosa pergunta abala os alicerces de todo o universo.

sábado, agosto 27, 2005

ens et bonum et pulchrum convertuntur...

Originalmente falando, só de modo artificial e abstrato se pensaria a arte dos antigos separadamente de sua dimensão sagrada. Os primeiros desenhos nas paredes das cavernas, as primeiras manifestações sonoras, as primeiras narrativas, nada disso poderia ser concebido dissociado do caráter mágico envolvido.

Embora presente, importante e sistematicamente cultivado, o elemento estético estava essencialmente vinculado ao ético ou, dizendo de forma ainda mais simplificada, o belo era bom. Isso tudo é muito fácil de ser explicado e entendido, não obstante o significado real de tal relação ser praticamente impossível de se alcançar por nós que nascemos velhos demais.

Seria interessante pensar essa relação pelo aspecto da eternidade envolvido. Não deixa de ser fundamental o ponto de que tudo aquilo de que tratava a arte, e continuou tratando até relativamente muito pouco tempo atrás, possuia um quê eternizável. A beleza era algo tão digno de eternidade quanto o próprio mundo — mais que isso, o mundo se tornava digno de eternidade por ser capaz de engendrar beleza. Se é verdade que na modernidade a cada dia o estético se emancipou mais do ético, o romantismo compensou a diluição da eternidade religiosa com o mito do gênio. Trocando eternidade por posteridade, uma medida paliativa que serviu bastante bem ao longo do século XIX, os românticos produziram o que está entre as coisas mais belas da nossa espécie.

A posteridade, no entanto, esvai-se. "Arte" contingente é o dejeto do último século. Nada mais é eterno. Até mesmo sobre as montanhas, como dizia Rilke, tremula o tempo. Posteridade, hoje, é quimera, o mito de um paraíso perdido.

— Quem sinceramente não tem o coração podre com a certeza de que nossa espécie desaparecerá um dia e que, num dado momento, não haverá qualquer alma no universo capaz de derramar uma lágrima ouvindo a Pastoral? — lugentemente murmura o Mundo.

A velha fórmula de Sileno é a cada dia mais real por aí: tudo o que existe merece desaparecer imediatamente uma vez que é certo que desaparecerá um dia. Quando não mais existe posteridade, e a própria vida é puro escárnio, a arte verdadeira é uma tarefa impossível.

Uma existência ridícula não pode produzir senão uma arte ridícula.

Das Criancinhas

Logo chegará o período de propagandas eleitorais e seremos todos bombardeados por imagens de criancinhas. Obviamente essa iconização não é casual.

Não mais se trata de crianças, mas sim de criancinhas. O sufixo, aqui, não é mero diminutivo. Uma criancinha não é apenas uma criança pequena.
No começo do século passado, há algumas décadas, portanto, revistas ensinavam aos jovens truques a fim de que parecessem mais velhos e que suas barbas crescessem. Hoje, homens feitos se esforçam descomedidamente para voltar à adolescência, mulheres empenham-se para se tornar novamente garotinhas idiotas e está instalado o culto à infantilização.
À serenidade, experiência, cautela e precisão, os eternamente jovens propõem sua absoluta falta de comprometimento com uma identidade e uma incrível energia carente de qualquer projeto realizador.
Em uma realidade estroboscópica, de que adianta todo o conhecimento? Diante da aparente inutilidade de tudo o que se sabia, todos se tornam crianças perante a incapacidade de orientação, crianças que já nasceram demasiado velhas e que sentem, com revolta, que uma vida inteira será muito pouco tempo para brincar no play. Antes, crianças eram futuros adultos; hoje, adultos são crianças que cresceram demais. O mundo se torna uma Disney gigante da qual é praticamente impossível escapar.
Uma criança é um ser-humano que nasceu há pouco e se encontra nos primeiros anos de seu desenvolvimento. Uma criancinha é o emblema da Virtude, em uma humanidade que se acredita (não de todo sem motivos, é verdade) repleta de falhas e sem coragem e direcionamento para qualquer nova tentativa. Uma humanidade, enfim, que suspira por redenção embora não faça idéia de onde encontrá-la.

Uma vez que a Razão nos deu Treblinka e os Gulag, o culto se dirige à icônica falta de razão e superficialidade. O mundo quer se ver inofensivo, encher-se de compaixão, inspirar cuidados. Uma criancinha é tudo aquilo de ingênuo, inócuo e inútil que o mundo contemporâneo desejaria ser se ousasse desejar.

quinta-feira, agosto 25, 2005

Viúvas Profissionais

Bonitinhos mas ordinários: como é fácil fazer graça com a amargura! Esses autores que reclamam demais, que sofrem demais, que no auge da adolescência de cinqüenta anos encontram consolo na autocomiseração, cujo gozo torto se resume em fazer com que tenhamos peninha deles, naturalmente essa turma de ressentidos ficaria ofendida, o-fen-di-dí-ssima (bien entendu!), se lhes comparássemos àquelas típicas velhinhas que aos sessenta descobriram que estavam prestes a morrer e, vinte anos depois, torturam todos ao redor por não terem morrido ainda, ou às viúvas, enfim, que encontram na pena alheia o substituto para o carinho conjugal. É claro que a ofensa seria velada, provavelmente disfarçada com uma ironia cáustica performativamente contradita, pois na verdade em nada encontram suficiente valor para a corrosão.
Todavia, é isso que eles escrevem e suas páginas nada são senão o exercício da viuvez profissional de Deus.

quarta-feira, agosto 24, 2005

'Os Cus de Judas'

"O que os outros exigem de nós, entende, é que os não ponhamos em causa, não sacudamos as suas vidas miniaturais calafetadas contra o desespero e a esperança, não quebremos os seus aquários de peixes surdos a flutuarem na água limosa do dia-a-dia, aclarada de viés pela lâmpada sonolenta do que chamamos de virtude e que consiste apenas, se observada de perto, na ausência morna de ambições"
Lobo Antunes

Coincidentia Oppositorum

Ou: Do nosso fabuloso mundo dos oxímoros...
... música atonal, comida vegetariana, poesia concretista, cultura de massa, inteligência militar, televisão educativa, sexo virtual, teoria crítica, jornalismo imparcial, arte politizada, teologia da libertação, filosofia clínica, ética utilitarista, obra aberta...
Perto de nossa discreta excentricidade, os carnavais dos antigos são tão significativos quanto espirros de bebês.

Da falta de espelhos

O inferno de Sartre não tinha espelhos. Isso significa dizer que não havia possibilidade de falar de si mesmo em terceira pessoa. E o demônio por acaso conhece outros pronomes que não o eu?
Os
espelhos nos garantem que não somos simplesmente nós, mas que também podemos ser outros, que somos outros para alguém. Essa certeza delimita nosso próprio ser, funda os limites dentro dos quais nos constituímos e, ao mesmo tempo, permite que fujamos de nós mesmos nos tratando como personagens. Podemos ser outros aos nossos olhos, abrir um discurso sobre nossas falhas e fraquezas, dissertar sobre nossa vileza - um espelho instaura distância.
No
inferno nãoespelhos. Não é que o inferno sejam os outros, de fato, nunca gostei dessa formulação, que guarda sempre num impulso misantrópico uma discreta possibilidade de redenção. O inferno é a impossibilidade mesma de nos tornarmos outros para nós. É a condenação à eterna referência de si, o eu absoluto. E tudo o que desejaríamos seria um mísero espelho para cujo reflexo pudéssemos voltar nossa indisposição.
Mas não. Estaríamos entre quatro paredes e no inferno não haveria espelhos. nós e os outros, sem qualquer chance de troca de papéis.

sábado, agosto 13, 2005

Quintana

Os Degraus
Não desças os degraus do sonho
Para não despertar os monstros.
Não subas aos sótãos - onde
Os deuses, por trás das suas máscaras,
Ocultam o próprio enigma.
Não desças, não subas, fica.
O mistério está é na tua vida!
E é um sonho louco este nosso mundo...
Mario Quintana

terça-feira, agosto 09, 2005

Alguns sonhos intranqüilos...

Certo dia um tal senhor Samsa despertou indisposto. Homens, às vezes, abrem os olhos pela manhã como se tivessem despertado de nebulosos pesadelos. E olham para o sol, e olham mais e mais, porque decidiram que precisam se esclarecer. E continuam olhando para o sol até quase queimarem as retinas, voltam-se para dentro de seus quartos, olham para um quadro e mal percebem a moldura. Ai daquele que tentar ler um poema logo depois de olhar para o sol!
Um dia os homens passam a se achar muito importantes e iluminados e descobrem que não precisam de muita coisa que acreditavam precisar. Seus gostos mais delicados, seus autores preferidos, as guloseimas de sua infância, tudo ele acaba de descobrir como meras inutilidades. Esse homem se acha bastante forte simplesmente porque percebe agora que não precisa de Homero ou Beethoven para continuar vivendo.
Tudo o que é grande se torna apenas mais ou menos grande, relativamente grande, nem tão grande assim, não é mesmo?, e a grandeza é mais uma questão de gosto, afinal. E esse homem todo esperto e forte constata que a beleza e a profundidade são coisas absolutamente prescindíveis.
E quando esse grande homem passa a acreditar que continuaria sendo grande até mesmo em um deserto, sua existência imediatamente se torna num. O imbecil ri de sua força, sua independência e superioridade, ri sozinho no meio do silêncio de seu deserto, sem perceber que tudo o que tem na vida é areia e cactos.
Tanto mais se descobre que as coisas não são tão imprescindíveis, tanto mais a própria vida se torna algo bastante dispensável.

O bom e o mau Gutenberg

A invenção de Gutenberg democratizou o conhecimento. Todo o agradecimento dos povos por todos os séculos seria pouco diante dessa maravilha. Entretanto, não vos esqueçais: graças ao mesmo Gutenberg não há hoje no mundo, e não haverá jamais, um autor que seja tão incomensuravelmente grande que escape ao risco de ser lido enquanto se está no banheiro.

"Bestimmt, Erleuchtetes zu sehen, nicht das Licht"

Mehr Licht, mehr Licht!, naturalmente, poeta. Contudo, tomemos cuidado, somos mortais. Há um limite depois do qual o excesso de luz turva e impede a visão. A sombra não se opõe à luz. Sem os discretos fragmentos de silêncio espalhados entre cada nota, as melodias imediatamente deixariam de existir. Página em branco, leiamo-la sob a clara luz, todavia não nos esqueçamos de que sem a tinta negra nada poderia ser lido. O homem que mirasse um bosque e o apreendesse inteiro, num só olhar, jamais conseguiria compreender o que é uma árvore. Como qualquer universalização exige o esquecimento de pequenas diferenças entre singulares, toda singularização exige esquecimento de outros singulares. Não fosse o esquecimento, sombra da memória, a realidade se revelaria tão plenamente concatenada, tão necessariamente inteira, que a mera tentativa de se pensar em algo se mostraria vã. Deus, ao olhar para o mundo, está condenado a ver uma tela infinitamente branca. Sombras colorem o mundo. Mais, mais luz, mas não nos esqueçamos, como o próprio iluminado poeta lembrou: nossa condição é estarmos determinados a ver o que é iluminado, não a luz.

segunda-feira, agosto 01, 2005

O 'como se' da indignação

A indignação com o comportamento alheio se explica, salvo casos muito extremos, por nossa vaidade nos impedir de nos enxergarmos com seus olhos. Vós dizeis: é como se as coisas fossem dessa e daquela maneira. Em geral, vós não vos indignais pela forma tal qual as coisas se mostram e são, mas pela forma como, supostamente, elas aparentam ser. Vossa vaidade exige essa distinção.
A inclusão do como se poupa a humanidade de um exercício desgostoso: o olhar alheio, o inferno. O como se, ao mesmo tempo, preserva duas boas imagens que nos são caríssimas: a que temos de nós, a que temos dos outros. Eles vos tratam como se não gostassem de vós? Ora, meus amiguinhos, e de onde vem tamanha certeza de que gostam de fato? Removei o como se de vossa indignação e ela irá embora, sem solo em que se apoiar.
Mas aí resta a tristeza. Eu sei, eu sei, vós sois bons demais para ficardes tristes. Indignai vos, pois. Afinal, a indignação guarda dignidade.