Descaminhos: julho 2005

quinta-feira, julho 28, 2005

Dos axiomas de um tempo

Os axiomas carregam consigo uma certa ambuigüidade: ao serem expressos, indicam a possível não evidência daquilo que pretendem postular. Isso naturalmente não faz com que deixem de ser evidentes e verdadeiros, mas é um sinal de fraqueza quando os pressupostos invisíveis começam a ser vistos. Quando um pressuposto invisível se torna concebível, racionalizável e exprimível, encontrando uma formulação que o transforma em axioma, deve-se perguntar o que se passou com os olhos para que começassem enxergar aquilo que sempre esteve lá. Não é gratuitamente que o imperceptível se torna algo concreta e obviamente percebido. O que chega a ser evidente por si é, de alguma curiosa maneira, menos evidente do que aquilo cuja evidência é tão absoluta que nem mesmo o permite ser pensado. O espírito de um tempo bem pode ser apreciado quando se observam os axiomas que esse tempo foi capaz de formular.

Notável exemplo da saúde de nossa época é a dificuldade que temos para experimentar algo como o argumento ontológico. Nós o compreendemos enquanto um raciocínio, mas somos hoje capazes de encontrar nele tantos diversos problemas que passaram despercebidos pelas mais brilhantes mentes do passado que é estranho não nos perguntarmos, a partir disso, que diabos há de errado conosco.

O argumento ontológico não faria o menor sentido sem que estivesse pressuposto que existir é mais perfeito do que não existir. Que época mágica não foi essa em que um tão robusto axioma pôde passar, em geral, praticamente invisível! Para nós, hoje, essa idéia não apenas se mostra claramente um axioma do argumento ontológico como já nem é mais algo que possa ser dito tão evidente assim...

terça-feira, julho 26, 2005

Sede infiéis

Vós podeis ser infiéis com os autores, jamais promíscuos: que eles sejam cornos, mas nunca putas.
“A Filosofia precisa estar na vida, não nos livros!” — exclamam pequenos delinqüentes, peito estufado, cabelos sujos e chinelos. As meninas suspiram. Na maior parte das vezes, não são capazes sequer de manter as cabeças longe de piolhos.
É decerto bastante conveniente se elogiar o apedeutismo enquanto ainda não se deixou de ser um completo ignorante. Tanto quanto é ridículo, enfim, professar-se a castidade enquanto se é virgem.
Sim, é verdade. A boa Filosofia sempre envolve uma certa traição, mas o ponto é: não existe traição antes dos votos de fidelidade. Para trair autores é preciso ter se casado com eles.
O resto é putaria delinqüente.

segunda-feira, julho 25, 2005

Dos "leitores criativos"

Não acrediteis na velha conversa de "a interpretação é livre" que escritores deixam escapar por entre dois sorrisos amarelos, diante de uma tentativa exegética por parte de um leitor.
Naturalmente um texto permite possibilidades de leitura, níveis de acesso, graus de abordagem. Estejamos certos de que poucas coisas são mais agradáveis a um autor do que ver seu texto sendo lido para além do que ele próprio o tinha concebido. A gente sempre se enternece com esse tipo de coisa, que não se trata de uma "interpretação livre", mas de uma leitura inteligente que só faz reafirmar a qualidade do que foi escrito; em outras palavras, uma leitura inesperada faz elogio ao nosso texto.
Não vos enganeis, porém: esse papo de "a interpretação é livre" é eufemismo que os mais delicados utilizam para não chamarem o leitor de estúpido.
Uma coisa, contudo, é quase sempre certa: cada autor tem o leitor que merece. Dificilmente encontraremos uma "interpretação livre" de Dostoievski, Kafka ou Machado. Encontramos, é claro, um sem-fim de asneiras e interpretações superficiais que se cristalizaram com o tempo e são repetidas ad aeternum. Não será em qualquer esquina pseudo-intelectualizada que haverá alguém com a "nova verdade" d'Os Demônios. Nesse caso, os maus-leitores se contentam em repetir besteiras, não procuram inventá-las.
Por outro lado, festejável será o momento em que nos depararemos com um comentário lúcido sobre Joyce, Eliot, Pound, só para citar alguns mais badalados. A produção estética do século XX tomou um caminho tão hermetizado que podemos falar em uma dimensão quase mítica. O Eliade já chamara, há algumas décadas, a atenção para a semelhança entre um grupo de joyceanos e neófitos de uma seita secreta qualquer. Encontram-se para lerem textos do autor sacramentado, vibram ao identificar uma relação matemática na redação, ou com a etimologia de um neologismo. A própria leitura se aproxima de um rito iniciático. A função dessas obras acaba por se reduzir ao ritual que propiciam.
De tudo fica ao menos uma lembrança a autores e leitores: o papel é bonachão. Se, por um lado, aceitará de bom grado qualquer idiotice que nele desejarmos escrever, por outro nada poderá para se proteger da originalidade de leitores sanguinários.

domingo, julho 24, 2005

Mundo de vidro

O barulho não é oposto ao silêncio, como se afirmaria em um primeiro descuidado momento. Se com verdade declaramos que nossa época é a mais barulhenta de todas, afirmaríamos com igual justeza ser o nosso tempo o mais silencioso da história.
O aparente paradoxo é resolvido se compreendermos que essencialmente o barulho é constituído pelo mesmo princípio que o silêncio, apenas organizado de forma diferente: esse princípio é o vazio. Tanto o silêncio quanto o barulho são duas maneiras diferentes de se dispor um efetivo vazio: aqui ele é agitado, lá é abandonado à imobilidade, mas trata-se do mesmo vazio. O que nos incomoda tanto em um quanto em outro caso é o convite imperioso que recebemos a preencher essa falta. Basta nos acharmos cercados de silêncio, ou de muito barulho, e nosso pensamento divaga, corre ligeiro, desesperado de tudo preencher de sentido.
Benjamin já escrevia, no começo dos anos trinta, sobre os soldados que voltaram das trincheiras em silêncio. Outrora o regresso da guerra os inundava de experiências a serem compartilhadas, ditas, narradas; ali o absurdo esvaziara de tal forma o mundo de sentido que as narrativas não eram mais viáveis, a magia que brotava de cada palavra perecera, e o que sobrara foram as ruínas de uma linguagem desabitada, em que as palavras estavam mortas e imobilizadas. A falta de projetos e de utopias tornara o mundo vazio e criara um tempo em que as palavras seriam apenas barulhos. Empobrecida ao limite, nossa história se tornou uma tabula rasa.
Ah, Scheerbart! ah, mundo de vidro!

projetos e projetos

Tudo se passa mesmo como se tivéssemos acordado um novo projeto para a humanidade. Construímos coisas tão surpreendentemente pavorosas e inacreditavelmente vis que percebemos não sermos ainda bastante desprezíveis para elas, nossas criações atingiram níveis tão sofisticados de perversão e pusilanimidade que tem sido necessário nos tornarmos progressivalmente menos homens. É como se depois de termos chegado a Hiroshima e Auschwitz constatássemos, com certa camuflada lamentação, que ainda não criáramos uma espécie digna dessas invenções. Ainda não.

quinta-feira, julho 21, 2005

Do sarcasmo

Muito se perdeu quando o humor de uma época se conforma com o mero sarcasmo. Então é chegado o tempo em que as sutilezas, se não passam despercebidas, são quasemau gosto”. O sarcasmo não é apenas uma “ironia cáustica”; a menos que tiremos as aspas com que as mãos afeminadas do povinho tudo tomam e compreendamos ipsissima verba a causticidade.

Enquanto a ironia opera com um certo encanto que está presente em todas as dissimulações, o sarcasmo opera tão somente com coices de asno, pois instalado num mundo sem aparências, que é essencialmente um mundo sem promessas, nada lhe resta senão o coice duro e o riso asinino para combater o mau combate, o combate em que quase nada está em jogo. A ironia joga com a distância que se descobre entre a linguagem e a realidade. Ela conhece os pontos cegos do real, que a miríade de metáforas das representações tangenciam sem nunca agarrar. Ela é, na verdade, uma última e serena opção, o genuíno salto no abismo, o salto pelo qual a linguagem se oferece em holocausto, torce-se pelo avesso, aniquila-se, e alcança, então, o inefável, o lado de , ainda que não lhe seja mais capaz de representar.

Um mundo embrutecido inviabiliza as ironias. Em um tal mundo, a linguagem representa pouco demais, não enxerga o abismo, não tem mais tarefas. Um mundo com equívocos e aparências é um mundo repleto de encanto que postula negativamente a existência de um valor real e concreto para além das dispersões. Quando nossas mãos se tornam grandes demais para evitar que por entre os dedos se esvaia a distinção entre aparência e realidade — a que devemos quase tudo o que chegamos a ser — , o mundo se nos mostra planificado em uma implacável dureza contra a qual jogos de palavras nada mais podem. Restam os coices.

Sarcasmo, riso amargo, remonta etimologicamente em grego ao movimento herbívoro de se mostrar os dentes, o abrir a boca para pastar. Sarcasmo: essencialmente, humor eqüino, humor vegetariano. Entre as figuras do humor, o sarcasmo é de todas a menos humana. Se o homem é o único animal que ri, sendo portanto o único capaz de sarcasmo, o homem sarcástico é o mais próximo da cavalgadura. Ele próprio não nega isso, muito pelo contrário. É, na verdade, o primeiro a se rir de seu parentesco com as bestas. Com os olhos nublados, crê-se em posse privilegiada da verdade das mais altas destinações da humanidade, louva-se com arrogância diante de homens que ainda se levam a sério e que são, para ele, as verdadeiras bestas, não obstante falte muito pouco para que ele se ponha de quatro a relinchar escandalosamente.

Em um mundo sem metafísica, pululam os vegetarianos.

terça-feira, julho 19, 2005

Aula de Tradução

"How do I love thee? Let me count the ways.
I love thee to the depth and breadth and height
My soul can reach, when feeling out of sight
For the ends of Being and ideal Grace.

I love thee to the level of everyday's
Most quiet need, by sun and candle-light.
I love thee freely, as men strive for Right;
I love thee purely, as they turn from Praise.

I love thee with a passion put to use
In my old griefs, and with my childhood's faith.
I love thee with a love I seemed to lose

With my lost saints, --- I love thee with the breath,
Smiles, tears, of all my life! --- and, if God choose,
I shall but love thee better after death."
Original de Elizabeth Barret-Browning, 1850


"Wie ich dich liebe? Laß mich zählen wie.
Ich liebe dich so tief, so hoch, so weit,
als meine Seele blindlings reicht, wenn sie
ihr Dasein abfühlt und die Ewigkeit.

Ich liebe dich bis zu dem stillsten Stand,
den jeder Tag erreicht im Lampenschein
oder in Sonne. Frei, im Recht, und rein
wie jene, die vom Ruhm sich abgewandt.

Mit aller Leidenschaft der Leidenszeit
und mit der Kindheit Kraft, die fort war, seit
ich meine Heiligen nicht mehr geliebt.

Mit allem Lächeln, aller Tränennot
und allem Atem. Und wenn Gott es giebt,
will ich dich besser lieben nach dem Tod."
Tradução de Rainer Maria Rilke, 1908


"Amo-te quanto em largo, alto e profundo
Minh'alma alcança quando, transportada
Sente, alongamente os olhos dêste mundo,
Os fins do Ser, a Graça entressonhada.

Amo-te em cada dia, hora e segundo:
À luz do sol, na noite sossegada.
E é tão pura a paixão de que me inundo
Quanto o pudor dos que não pedem nada.

Amo-te com o doer das velhas penas;
Com sorrisos, com lágrimas de prece,
E a fé da minha infância, ingênua e forte.

Amo-te até nas coisas mais pequenas.
Por toda a vida. E, assim Deus o quisesse,
Ainda mais te amarei depois da morte"
Tradução de Manuel Bandeira, 1945

Entre aspas

Citar entre aspas é invariavelmente um sinal seja de canalhice, seja de estupidez. Botar um texto entre aspas é domesticá-lo, amansá-lo. Quem o faz ou bem procura propositalmente fazer com que o texto comece a dizer o que não queria, ou bem apenas não entendeu o que estava em questão.
Afastai vossos textos de ambos, os canalhas e os estúpidos não são bons amigos. Ambos hão de destruir vossos textos com suas aspas - esse engenhoso instrumento de tortura literária -, seja porque, tendo-os compreendido ainda mais do que vossa coragem, farão com que falem mais do que estavam dispostos, seja porque, não os tendo compreendido de forma alguma, farão com que falem o que não estavam dizendo.
Dois homens citam entre aspas: o filósofo e o jornalista. Contudo não nos enganemos com as aparências, pois a Academia, se não de ínicio, ao menos na maior parte das vezes, está mesmo é repleta de jornalistas.

segunda-feira, julho 18, 2005

As caixinhas de comentários ou Do devir símio

Uma das perguntas mais relevantes que me ocupa nesse momento de retorno é sobre a existência ou não da caixa de comentários. A questão é séria.
Num determinado instante, aquele que escreve se encontra em uma situação da qual não pode se esquivar e cuja saída determinará aquilo que ele é. Em um dado momento, o estilo ganha uma força quase independente do conteúdo. Hipostasiada, a bela aparência de sua escrita chega a se tornar uma rival de sua mensagem. O estilo, agora já tornado um mero maneirismo, é então uma fórmula de agrado ao público.
Que ele se cale, pois, até possuir algo que mereça ser escrito. Ou, o que infelizmente é mais comum, o autor se torna um macaco que, tendo aprendido a conquistar aplausos com um certo repertório de números, transforma-se em mera diversão para os outros, fornecedor do que já se espera encontrar ali, e chega a se esquecer de que a simpatia e a gargalhada do público não fazem com que ele próprio deixe de ser uma besta circense.
Foi em parte por isso que o antigo Descaminhos fora desativado.

Dos velhos e novos descaminhos

Não faço idéia de por onde anda boa parte da turma que acompanhou o velho Descaminhos em 2002 e 2003. Não os culpo se tiverem desistido de mim. Em todo caso, há de ser interessante reencontrar rostos familiares por aqui com o passar do tempo.
A idéia é ainda mais ou menos a mesma, o que justifica eu manter o mesmo espaço após o devido cuidado de remover as quase 300 páginas de histórico que se encontravam no ar. Há dois motivos complementares que explicam a antissepsia: o primeiro é que eu simplesmente não seria capaz de me sentir indiferente à irresponsabilidade com que certas coisas foram ditas; o segundo é que tendo sido excluído o histórico fico à vontade para republicar antigos textos que ainda me parecem aproveitáveis, com ou sem revisão. Se é verdade que o segundo motivo, não obstante inofensivo e honestamente declarado, reduza-se a uma questão de comodidade, o primeiro não revela, não vos animai, "maturidade intelectual" do Andarilho - decerto não o que por aí se entende por tal. Vós chamais de "maturidade intelectual" o movimento do pensamento cansado de falar para poucos que aquiesce no fim diante dos assustadores beiços da medianidade. Digo, não se trata de eu ter concluído que o falatório na fila do banco não estava tão errado afinal, mas justamente de ter percebido que, em grande parte das vezes, eu fora condescendente demais.
Finalmente, em aspectos práticos, o desdobramento do Descaminhos não poderia se fingir linear depois da ausência perpétua da amiga que, por si só, fez com que valesse realmente a pena cada coisa dita aqui. Não é nada pequena sua parcela de responsabilidade no meu desejo de retorno. Fica o agradecimento já entregue algumas nunca suficientes vezes em vida por tudo que ela me disse e por um dos mais agradáveis jantares de minha vida.

Hora da faxina

O Freunde, nicht diese Töne!
Sondern laßt uns angenehmere anstimmen

und freudenvollere!

Pronto. Voltei.

domingo, julho 10, 2005

Testando

Um, dois, três...