Descaminhos: abril 2012

terça-feira, abril 17, 2012

O avesso da confabulação

Se é verdade que nossas recordações constituem uma boa parte do que somos, desse eu pelo qual nos reconhecemos e ao qual referimos nossos pensamentos e ações, por outro lado deve ser notado que amiúde acontece de possuirmos uma miríade de recordações com as quais não mais nos identificamos apesar de as sabermos nossas. Não mais somos capazes de reconhecê-las como sendo parte daquilo que somos, não mais nos sentimos à vontade de conjugá-las na primeira pessoa; guardamos tão somente o registro, o protocolo emitido pelo hábito das narrações, de que fomos nós os personagens daquelas cenas. Um estranhamento fantasmagórico, contudo, acompanha essa consciência: de alguma forma ela deixou de ser a consciência que temos de uma experiência que de fato vivenciamos e reconhecemos como sendo a nossa, de alguma forma ela agora se apresenta diante de nós tão somente como a consciência ex auditis que temos de uma história que nos foi contada. E, de fato, trata-se da mera consciência de uma história narrada, e não da consciência de uma história vivenciada, pouco importando aqui que, no caso, tenhamos sido nós mesmos, ou alguma versão de nós, simultaneamente os narradores e personagens da narrativa.
Enquanto nos referimos às recordações das histórias vivenciadas como sendo um elemento essencial de nossa própria constituição, as recordações das histórias narradas integram um repertório de experiências difusas que pouco se diferenciam de nossa capacidade imaginativa. Entram, é claro, na complexa equação da qual somos resultado e pela qual respondemos, mas não num sentido essencialmente diferente do que a recordação dos enredos das epopeias, tragédias, dramas e romances que lemos ou de que ouvimos falar.
O estranhamento se dá diante da consciência de que, em algum momento, nossa relação com aquela história narrada já foi uma relação vivenciada. Eu sei que aquela recordação é minha, mas o sei apenas porque me lembro de minha própria memória recontando a história para si mesma.
Muitas podem ser as formas da morte. Em uma passagem que, avant la lettre, poderia ser dita cheia de ecos borgianos, Spinoza afirma, com a naturalidade de quem dissesse “está chovendo”, que nenhuma razão nos obriga a considerar que um corpo somente morre quando se encontra transformado em cadáver. “Muito pelo contrário, conforme a experiência mesma nos ensina”, ele diz. O texto, então, assume um tom mais sombrio. Spinoza menciona que ouviu falar de certo poeta espanhol que, uma vez gravemente adoecido e não obstante tendo por fim se recuperado da moléstia, perdeu de tal forma a memória que não mais reconhecia como suas as fábulas e tragédias que outrora escrevera. “Por vezes”, comenta o filósofo, “acontece que um homem sofra mutações tais que dificilmente poderia ser dito permanecer ainda o mesmo”. O contexto da passagem é mais radical do que a mera citação deixa transparecer: Spinoza não está simplesmente afirmando que as pessoas mudam conforme suas experiências, o que de resto seria uma banalidade, mas sim que certas afecções podem modificar de tal maneira os indivíduos que, rigorosamente falando, eles morrem e se tornam outros.
Se hoje é bem conhecida a possibilidade de que cheguemos a acreditar sinceramente em recordações de eventos que jamais aconteceram (e os trabalhos de Elizabeth Loftus demonstram inclusive a possibilidade de tais recordações serem deliberada e clinicamente criadas), o avesso dessa confabulação é nos depararmos com recordações que deixaram de ser propriamente nossas, ainda que reais e de modo algum esquecidas. Arrebentada a cadeia virtual de inumeráveis atualizações que ligava numa ponta o momento do acontecimento propriamente dito e, na outra, sua narrativa mais recente, tais recordações passam a vaguear destripuladas e à deriva pelas vastidões oceânicas de nossa alma à espera da misericórdia do esquecimento. Trata-se da desconcertante experiência de que, como num aborto retido, carregamos em nós partes mortas do que já fomos.
O passado pode estar povoado por diversos fantasmas, mas os mais assustadores são aqueles diante dos quais guardamos um respeito incomum, quase reverencial: aqueles que se desprendem dos cadáveres de versões apodrecidas de nós mesmos.