Descaminhos: abril 2011

segunda-feira, abril 25, 2011

Uma tarefa para os historiadores

Ganhos e perdas, é claro, só fazem sentido a partir de um critério. É relativamente fácil escrever as histórias das conquistas e descobertas, não apenas porque elas produzem registros e alegrias, mas principalmente porque o critério que as define enquanto tais é algo com que nos identificamos e pelo que nos reconhecemos, ainda que, às vezes, esteja tão próximo que não se deixe enxergar.
Muito mais importante, contudo, especialmente numa época em que a idéia de progresso ainda parece fazer tanto sentido, seria escrever uma história das derrotas, das perdas e dos esquecimentos. Mitigaríamos a idéia de progresso tão logo começasse a ser realizado o impossível inventário infinito não apenas daquilo que se tivesse sacrificado, daquilo a que se tivesse renunciado, ou que ostensivamente se tivesse jogado fora, mas principalmente do que se perdera e daquilo de que se esquecera. Sobretudo daquilo que nunca se tivesse conseguido ou sequer ousado compreender.

terça-feira, abril 19, 2011

"A fina, a doce ferida"

Em alemão há um provérbio a advertir que não se deve pintar o demônio no muro. O sentido é claro, é rasteiro: sejamos otimistas. Por outro lado, há também quem sequer chega a pintá-lo, jurando tê-lo encontrado já desde sempre ali. Entre os dois cumes de estupidez, estende-se um vale repleto de vaidade daqueles que esmeram as pinturas, capricham nas tintas, tornando-o tão mau quanto se é precariamente capaz de imaginar. Compassivo, Brecht comentou, em um poema sobre a máscara de um demônio, que aquelas veias estufadas na fronte deveriam indicar, isso sim, o tanto que é enfadonho ser mau.
Com efeito, é preciso um bocado de vaidade para se pintarem os demônios tão malvados. Afinal, quase todos os desprazeres se devem à tolerância que temos com nossos próprios defeitos, sobretudo à nossa irresponsabilidade, à nossa e também à que, por conta da nossa, acabamos tolerando nos outros. Há uma lista tão comprida de aspectos da nossa sempiterna miséria que provavelmente deve ser bem raro que demônios cheguem a precisar se mobilizar por nós. Quem precisa da intervenção de demônios quando tão amiúde se tropeça nos próprios cadarços e em pedregulhos, pedregulhinhos?
Nem é tanto que não haja abismos; mas é que, de início e na imensa maior parte das vezes, a pusilanimidade é tamanha que sequer se chega a vislumbrar a beira deles.

terça-feira, abril 12, 2011

Vae mundo

Há um quê de ladra na ironia, que rouba a casca significante da linguagem como o lobo a pele da ovelha. De modo dissimulado, indica assim o que não consegue plenamente dizer. Há nela um quê blasfemante, pois no momento mesmo em que é compreendida, e portanto revelada enquanto tal, vitupera prometeicamente a sacralidade da linguagem.
Ladra porque sempre ilegítima: é evidente que o uso de qualquer ironia provoca desníveis entre as experiências de quem fala e ouve, escreve e lê; detona uma descamação no sentido do texto, e a principal função disso é, decerto, roubar parte do chão do leitor e de sua pose confiante de que ainda sabe sobre o que exatamente se está falando. Cria escândalo, no sentido evangélico preciso do termo. Essa desorientação pode funcionar como ensejo para um pontual esclarecimento, uma tomada de consciência da profusão de mapeamentos absurdos que, de início e sempre, precisam ser oportuna e estrategicamente tomados como razoáveis para que raciocínios os mais simples se estabeleçam. Ou sejam sequer formulados. De início e sempre, repito, porque em momento algum a proposta poderia ser remover esses mapeamentos absurdos, os quais, como crenças elementares, são condição de possibilidade de todas as tomadas de posição. Não se trata nem mesmo de esperar que alguém troque as crenças a partir das quais fala; isso seria um outro movimento, mais próximo mesmo de uma catequese, onde a ironia dificilmente seria bem-vinda. Menos catequista e mais terapêutica, a ironia deveria funcionar como a água fria que baixasse a bola de quem perdeu a dimensão da fragilidade — e, no limite, da insustentabilidade radical — do literalismo de toda e qualquer posição. Ela está a lembrar que o mapa é só um mapa. É muito mais que catequese: é conversão.
Por tudo isso, o desnivelamento não é apenas um efeito colateral da ironia, é seu princípio ativo, e quem recorre à ironia esperando ser plenamente compreendido mostra com o ressentimento da incompreensão a mera vontade da pose de engraçadinho. Como nos lembra Mann em seu ensaio sobre Chamisso, ela quase sempre significa construir uma superioridade a partir de uma carência. O engraçado e o gracejo são figuras da desgraça. Ironias plenamente compreendidas são como metáforas que se tornaram catacreses: uma experiência estéril, cristalizada, decaída, a qual, instrumentalmente, ainda que não sem certo gracejo, consegue se prestar apenas como moeda de troca num comércio entre coisas e palavras, sem contudo provocar ainda qualquer pensamento que mereça esse nome. Plenamente compreendida, seria como uma ladra que roubasse algo de que não precisa, que sequer deseja, e já lhe tivesse mesmo sido dado.
Assim como houve o bom e o mau ladrão, há a boa e a má ironia. Há o bom e o mau escândalo, provocados por boas e más ironias. Escândalo é o momento de perplexidade diante da contradição, da blasfêmia, da equivocidade. É o momento da tentação, em que a integridade do espírito é perturbada, é o momento em que se perde a confiança na estabilidade da própria ordem no interior da ordem do mundo. É quando a ordem do mundo, que espelha a ordem do espírito e nela se faz espelhar, se torna o princípio do desordenamento do espírito. O lado mau do escândalo, efeito colateral de todas as blasfêmias, elas mesmas inevitáveis, é a desintegração do que não se queria desintegrar, a serração do galho sobre o qual se senta. Em virtude de seu lado bom, entretanto, o escândalo quebra a sedimentação esterilizante do que precisa continuar vivendo. Tenta tornar uma vez mais a catacrese em metáfora. Nesse caso, o escândalo não é ocasião de queda, desgraça, desesperança, mas sim de contrição, metanóia, conversão.
Tudo isso, é claro, num conta-gotas impossível. Não se separa a boa ironia da má, tanto quanto não se separa, de direito ou de fato, o bom fármaco do mau. A ironia está para a imbecilidade como a quimioterapia para um corpo com tumores.