Descaminhos: março 2010

sábado, março 27, 2010

Contra a geometria:

Porque no meio dos caminhos reais, entre os imponentes picos do maravilhosamente bom e do devastadoramente ruim, extremos cuja visão nos impressiona, entusiasma e assombra, atraindo para si quase a totalidade de nossas energias, desdobra-se incerto, sombrio e silencioso o inóspito vale do desconcertantemente péssimo, sempre pronto a devorar na banalidade de sua indiferença os alpinistas com seus sonhos, seus medos e seus barômetros escangalhados.

terça-feira, março 09, 2010

Do que pode haver de precioso

Uma vez que nosso tempo preza como nenhum outro o conforto e a fruição de estímulos prazerosos, chegando mesmo a prezá-los a ponto de os confundir com o ideal de uma boa vida, é natural que daí se siga uma demonização da dor e de toda e qualquer espécie de aflição ou sofrimento. Para um tempo em que um bom trabalho é aquele que se quer fazer, ou aquele pelo qual se é sobejamente pago, um tempo em que a boa saúde é estritamente aquela em que se podem contornar os desconfortos das doenças e prolongar a vida tanto quanto possível com o único objetivo de gozar aleatoriamente mais sensações gostosas, um tempo em que o ideal caricato de amor se desespera em busca de um monstrengo que conjugasse em um só momento estabilidade e êxtase, um tempo, enfim, em que a boa vida é aquela em que se sofreu pouco e em que a boa morte é preferencialmente anestésica, para esse tempo se anuncia a paulatina supressão da distinção entre as figuras do herói e da vítima, que tendem a se sobrepor e se confundir numa figura que época alguma julgara digna de ser cantada: um herói sem qualquer virtude notável, um herói cujo heroísmo se resume a suportar sofrimentos aleatórios que um mundo sem muito sentido lhe inflige, um herói que nada mais é do que um sobrevivente que pouco ou nada tem a fazer com a vida que carrega.

Tudo muito distinto das provações por que passavam heróis clássicos e mártires: heróis cujo heroísmo se manifestava na assunção da responsabilidade pela realização do trabalho que precisava ser feito a despeito da quantidade de sofrimento que isso pudesse causar, ou na assunção, em nome de um bem maior que sua existência, de um culpa que não era sua.

É uma indignidade típica de nosso tempo a confusão que reduz o valor das pessoas ao sofrimento por que passaram, como se fossem meramente a resistência a um mundo incompreensivelmente cruel, hostil e por vezes macabro, como se fossem enormes por terem sobrevivido ao mundo com o mérito de bactérias que resistissem a antibióticos potentíssimos, e não pelo que, a despeito de toda dor, às vezes chegam a se tornar. Ao se admirar a pura resistência material, a compaixão rouba o espaço da verdadeira admiração.

Nossos sentidos se perverteram a ponto de achar que o puro medo de cicatrizes é motivo suficiente para se fugir do que quer que seja e, como conseqüência disso, aprenderam a venerar aqueles que as carregam como criaturas admiráveis simplesmente por carregarem-nas, insultando com esse gesto tudo aquilo que pudessem ter de admirável de fato. Nossos sentidos não mais enxergam que uma cicatriz, em si e por si mesma, nunca é bela ou feia: é tudo o que se fez e faz a cada dia de todo seu contorno e sua história que pode chegar a ser belo. É todo o resto que, a despeito de um sofrimento que pode chegar ao inimaginável, se agiganta e ri desse sofrimento, ou simplesmente o ignora com certa altivez, o suporta com certa serenidade, demonstrando que o que realmente importa, a admiração que nada deve à compaixão, não se deixa reduzir a alegria e tristeza, prazer e dor.

É uma beleza que, quando surge, nosso tempo não compreende muito bem.