Descaminhos: setembro 2005

terça-feira, setembro 27, 2005

Os jilós hão de ser poetas

Deveis estar atentos à deslumbrante capacidade de superação da Natureza. Tanto a História quanto os Mitos nos maravilham com exemplos de pobres grandes criaturas que, a despeito da disposição inglória que a madrasta Natureza lhes ofertou, souberam contornar seus obstáculos e encantar nossa existência. Videntes cegos, compositores surdos, gênios feios, escultores leprosos,… reparai que muitos entre os grandes homens gozavam de saúde precária!
É nesse sentido e com essa admiração que o caso de um filósofo mentalmente retardado, como Mr. Peter Singer, deve nos encher de admiração e alegria. Trata-se do desdobramento dos encantos da Natureza, seu processo de contínuo aperfeiçoamento das espécies!
Um dia, haveis de ver, até os jilós conseguirão escrever belos poemas, e nosso mundo será finalmente uma gracinha.

quarta-feira, setembro 21, 2005

Dos Escritores Talentosos

Talento é coisa de pouca monta. O deslumbramento que homens talentosos são capazes de causar em nossa época é sintoma nítido da vitalidade dessa doença antiga que nos aflige. Talento é quantidade adverbial e não adjetiva: diz de como é feito, mas muito pouco do que se faz.

Talento nada significa além da capacidade de penetração no espírito alheio. É meio e não fim. Como um carro desgovernado, quando o talentoso é pobre demais para ter algo além de seu talento, tudo o que pode fazer é empeçonhar. Um autor é tanto mais repugnante quanto maior é a distância entre seu grande talento e a vileza de seu espírito.

O talento está para certos autores como as asas estão para as baratas.

Didatismo da Canalhice

É verdade: obscuridade não é profundidade. Mas clareza também não é virtude. Mais que isso, não raro é canalhismo. Atenção: se um autor faz tanta questão de ser "claro" é porque talvez já saiba que está a dizer tolices. As maiores tolices, reparai, se forem expostas de um jeito bastante claro, didático até, podem mesmo parecer verdadeiras hierofanias.
Se um escritor está mais preocupado com quem o lê do que com o que escreve, mantende um pé atrás: pregadores são perigosos.

quinta-feira, setembro 15, 2005

Dos demônios e seus sorrisos

O maior perigo dos demônios, já nos ensinava o mago do sertão, é que basta descobrirmos que eles não existem para que eles tomem conta de tudo. E tomam mesmo, com muita classe e sutileza, porque balbúrdia é coisa de endemoniados e não dos demônios. Ciciando tudo pelo que os espíritos baixos anseiam ouvir, inflam o peito humano de arrogância e pedem ação: demônio gosta é de muito trabalho.
Die Philosophen haben die Welt nur verschieden interpretiert, es kommt aber darauf an, sie zu verändern, murmurou-se certa vez. O murmúrio fez-se grito, o grito fez-se ação, os demônios sorriram. Quem, senão os espertos e inexistentes demônios que tomam conta de tudo, poderia esperar dos filósofos algo diferente da contemplação teorética que, de um jeito ou de outro, fundava a essência do que tinham a fazer? O apelo retomava, de modo quase explícito para quem tem olhos um tantinho atentos, a vetusta separação entre teoria e prática, essência e aparência, forma e matéria. A retomada, contudo, nunca teve outra função senão o sorriso dos demônios.
Largai as interpretações do mundo, o verbo da vez é verändern. Ingenuidade ou parvoíce: pelo menos uma das duas é necessária para traduzi-lo por transformar. O que há de mais essencial na expressão se perde, escapa por entre os dedos frouxos da ignorância quando perde de vista o mais importante de tudo: o outro. Muito mais do que uma transformação, uma Veränderung é uma alteração.
Alterar, alterar o mundo!, gritam os endemoniados.
As alterações não são, rigorosamente falando, meros acidentes de uma substância, são já substituições. A outrificação do outro o leva às suas extremas possibilidades, como que virando-o pelo seu avesso. Alterar uma substância, que é em si alteridade, é conduzi-la à máxima radicalidade de sua estrutura até dissolvê-la sobre si mesma dando lugar a uma nova. Os demônios, todavia, não nos pedem que alteremos substâncias: alterar o mundo, o mundo!
A questão, entretanto, é bem mais grave do que uma má tradução pode dar a entender a princípio. A questão, toda a questão, é que não há o outro do mundo, uma vez que não pode haver o outro do que é a condição mesma da possibilidade de alteridade. Alterar o mundo não passa de um eufemismo barato para aniquilá-lo.
É por isso que sorriem os demônios.

Das Schlangenei

Quem tiver ouvidos já ouviu. Algo estranho acontece. Algo perigoso surge. Algo muito, muito sério se desenvolve pelas ruas, pelas esquinas, nos bares, dentro dos ônibus, na mídia, num simples atravessar de avenida do Centro. Parecemos por demais ocupados ou desinteressados, traduzimos o mal-estar na inocuidade de uma piada ou na infertilidade de um resmungo, mas o ovo da serpente vai amadurecendo bem ao nosso lado.
Há muito medo amorfo e desesperança. Breve é o caminho que vai da desesperança ao desespero. Estais certos de que sabeis o que podem os desesperados? Quão longe vosso olhar histórico é capaz de alcançar?
Um sem número de utopias de bolso se oferecem em qualquer sinal de trânsito. Pregadores de todas as formas, há um verdadeiro buffet de deuses à escolha dos famintos. Ah, foram-se os tempos em que as revoluções eram apanágio dos astros! Os filósofos se cansaram de interpretar o mundo e quiseram… alterá-lo. Os pregadores não mais apenas pregam e tampouco continuam sendo pregados. Eles agora fecham teatros e cinemas, eles dominam as rádios, as televisões, as editoras. Eles fundam partidos.
Lembremo-nos do filme. É como um ovo de réptil. É apenas um ovo, mas o embrião já traz todas as características do adulto, e se desenvolve tácito, quase imperceptível, e nasce pronto para provocar destruição.

segunda-feira, setembro 12, 2005

Der Todesrausch

A Embriaguês da Morte
uma fantasia de mosquitos
" 'Venham para a lâmpada!' gritava bem aventurada a pequena Zippa.
Suas asas ruflavam e duzentos mosquitos obedeciam sem refletir o grito da pequena Zippa - a bem-aventurada.
Junto à lâmpada, coberta por uma cúpula de seda verde, estava sentado um velho homem que comia seu jantar.
Então vieram Zippa e os duzentos mosquitos, e Zippa estava excitadíssima.
'Morramos! A morte é a parte mais doce da vida! Queremos morrer agora! Morramos!'
E todos os mosquitos gritavam com Zippa.
Com uma bem-aventurada gargalhada eles voaram de encontro à lâmpada quente e logo estrebucharam próximos ao jantar do velho homem.
Ele queria matar rapidamente os moribundos para que não tivessem que sofrer muito.
E Zippa gritava sorridente, enquanto esfregava as asas incandescentes.
'E daí?! Nós morremos agora com prazer! A morte é tão bela!'
E todos os mosquitos gritavam moribundos junto com Zippa.
E todos riram - e - morreram.
O velho homem terminou o jantar.
Ele estava com fome."
(a tradução é minha)

sábado, setembro 10, 2005

Dos Superlativos

O que se diz não informa apenas sobre o que se diz, mas bastante sobre o que se cala. Tomai cuidados com os adjetivos superlativos: eles adulam insultando, e beijando cospem um misto de ressentimento e asco. Em uma tela negra, qualquer insignificante ponto branco é descrito como uma verdadeira mancha.
Prestai atenção à facilidade ladina com que os íssimos afloram às vossas bocas! Dizeis às pessoas, com toda a costumeira espontaneidade da estultícia, que são belíssimas, inteligentíssimas, ou demais adjetivos que o valham — já que todos se prestam à manobra —, mas sabeis, ou poderíeis sabê-lo se fôsseis mais sutis, que elas são apenas dignas dos adjetivos frugais, que não lhes pagassem tamanhas flexões, ou que no máximo, no melhor dos mundos possíveis, mereceriam um robusto intensificador. Superlativos nunca!, pois são sempre insultos velados. O que acontece, se me cabe explicá-lo, não é as achardes belíssimas, mas apenas bastante belas, simplesmente belas talvez, suficiente ou quase suficientemente belas em tantos outros casos, e no assombroso vácuo de outros quaisquer predicados a beleza que era ponto, às vezes mero cisco, revela-se a expressão máxima daquela medíocre qüididade.
O que de exagerado temos a dizer é apenas um subterfúgio para não confessarmos o vazio absoluto de outras coisas a serem ditas, quer esteja esse vazio no objeto elogiado, quer esteja, é bem verdade, em nós mesmos.

quinta-feira, setembro 08, 2005

Descatastrofização

Quandoalguns poucos anos, numa época, contudo, muito distante da nossa, Benjamin nos falou que a era da reprodutibilidade técnica aniquilava a aura da obra de arte, não desdobrou suas idéias até ter pensado na aura que recobre um outro tipo de evento, mas cuja aniquilação não é menos problemática: a da catástrofe. Benjamin, no mesmo ensaio, chegou a articular o movimento de estetização da guerra, mas não fechou a conclusão inevitável, embora tenha deixado tudo o que precisaríamos para fazê-lo.

A aura é a existência única, o aqui e agora rigidamente demarcados, a autenticidade da obra de arte em relação ao espaço e ao tempo. Um determinado quadro se encontra em uma determinada galeria de um certo museu (a pergunta pela desterritorialização operada pelos museus é mais do que pertinente, aliás), e sem a reprodução técnica do mesmo é necessário irmos até para contemplá-lo. Ele tem uma existência dimensionalmente determinada, e essa determinação lhe confere o adjetivo único.

Todavia não foi apenas a obra de arte que se prestou à reprodução mecanizada, espalhando-se pelo mundo, emancipando-se de suas dimensões rígidas, perdendo seus referenciais de unidade, perdendo sua aura. Também a aura das catástrofes foi pulverizada. Uma desgraça, qualquer que seja, tem dimensões muito sólidas. Aconteceu em um determinado lugar, num determinado tempo, envolvendo determinados objetos. Há uma aura aqui. Os carros diminuem a velocidade ao passar em frente a um acidente porque aquele acidente traz, como tudo que possui uma aura, um valor de culto. É natural que assim aconteça. Por trás da mera curiosidade se esconde um tipo inconsciente e degenerado de reverência. Nossa época, porém, dispõe da tecnologia necessária para esvaziar o mundo de sua aura, em outras palavras, eliminar a possibilidade de culto. Ao se negociar tão elasticamente o valor de exposição de uma catástrofe (basta pensar nas imagens dos ataques terroristas e das tragédias naturais que são repetidas ad nauseam), reduz-se a um mínimo o seu sentido e unicidade.

A maior ameaça da sociedade panóptica, esse espaço que estamos construindo, com cada vez mais câmeras e microfones em todos os cantos, não é a falta de privacidade como temem os mais paranóicos, mas criação concomitante de um mundo que se torna a cada dia mais esvaziado de valor de culto, um espaço vítreo em que a aura não é mais possível.

segunda-feira, setembro 05, 2005

Spasimi d'ira... spasimi d'amore!

Não raro a essência do encanto de um universo estético se deixa perceber em alguma fragilidade. Sutileza que, decerto, ganha diversas formas de acordo com o universo em questão. Um traço delicadamente inesperado, um movimento discreto, uma palavra, um verso, um acorde: as grandes obras estão sempre a um passo do fracasso total e é precisamente nessa grande ameaça que reside seu poder.
Uma montagem da Tosca como a de Benoit Jacquot caminhava com firmeza em direção à perfeição. Elenco, regência, soluções cênicas, figurino, orquestra, tudo ia maravilhosamente bem até que um imperdoável descuido transforma o clássico de Puccini num dramalhão à la novela das oito.
Certo, concedamos: Puccini, não fosse a música, nunca estaria muito distante de se confundir com uma telenovela: Mimi é uma chata na maior parte do tempo, Cio-Cio-San desperta tanta pena que quase nos irrita e Calaf por muito pouco não vira um galã babão por cuja desgraça torceríamos por puro sadismo. As figuras, contudo, guardam sua dignidade em detalhes que, se perdidos, arruínam a obra inteira num compasso. É o caso da Tosca de Jacquot. A indicação no libreto é clara:
“E avanti a lui tremava tutta Roma!”, diz a bela Tosca diante do cadáver do pérfido Scarpia. Está saindo do gabinete quando — seu instante de redenção, o instante que salva toda a obra — volta-se para o corpo do barão, acende à sua cabeceira duas velas que estavam à mesa do jantar interrompido, apanha um crucifixo da parede e coloca sobre o peito do homem que tentou estuprá-la e assassinar seu marido.
Não, as heroínas de folhetim e de telenovelas não são capazes dessa cena. Ao menos, não da forma sem pieguice e sem caridade estupidificada com que Floria Tosca vela o corpo que acabou de assassinar. E são justamente esses trinta segundos de cena que a versão de Jacquot, de forma extremamente sintomática, suprimiu sem mais nem menos.
Lembro-me, se falamos desses naufrágios a partir de sutilezas, de uma já clássica desgraça que acomete, de vez em quando, algumas montagens de Hamlet. No cinema (as clássicas versões de Olivier e a de Zeffirelli são apenas dois bons exemplos) ou no teatro, não é incomum removerem a cena final em que Fortinbras restitui a ordem ao caos. O pequeno lapso transforma, em menos de um minuto, o que é a maior tragédia da modernidade num fuleiro draminha pequeno burguês.
Ah, se ao menos seguissem as indicações dos autores… Nelson Rodrigues tinha toda a razão: deve-se ser burro ao montar Shakespeare!

domingo, setembro 04, 2005

Dos relativistas

Um relativista, se usarmos a seriedade na hora de dizê-lo, é apenas uma abstração. Ninguém pode realizar a proeza de ser um relativista em todas as conseqüências do termo. Encontramos a limitação dessa abstração ao transpormos a idéia de um conceito geral para um sujeito empírico qualquer.
Enquanto conceito, o relativismo cria o fundamento teórico para se sustentar as maiores imbecilidades, com muitas das quais nenhum relativista concordaria. Do banal assentimento de que todo objeto tem vários lados, proposição bastante razoável cuja radicalidade é tão pequena que nem mesmo o maior dos conservadores hesitaria em concordar, o relativismo enquanto sistema conceitual leva à conclusão estapafúrdia de que todo objeto tem todos os lados.
É claro que ninguém disse isso. Uma tal assertiva não apenas viola a inteligência primitiva como invialibizaria qualquer constituição, qualquer processo vital, inviabilizaria mesmo sua própria enunciação. Ninguém disse, nem o próprio relativismo. Criaram-se, todavia, as possibilidades de dizê-lo, ou melhor dizendo, eliminaram-se as possibilidades de refutá-lo. Não no sentido de que tais conclusões passem por verdade (esse não seria o pior dos mundos possíveis), mas no sentido de que a própria idéia de "verdade" perde seu valor.
O relativismo logra remover toda a autoridade do discurso. Se todo discurso é apenas mais um discurso, e nenhum deles terá maior valor que outro, a iniciativa de dizê-lo é estuprada e aquele que fala não tem como deixar de ser visto e ver-se a si mesmo como alguém que faz o inútil: fim da ironia, resta o sarcasmo. Não existe valor onde não existe quantidade, hierarquia, autoridade e projeto. O relativismo permite a completa inutilização do mundo.
Entretanto, como já se disse, nenhum relativista concordaria com isso. Porque não há relativistas. Assim como, rigorosamente (e o advérbio aqui não é nada mais, nada menos do que tudo o que se perde), não se pode dizer de alguém que é um suicida até que esteja morto, não se pode dizer de alguém que é um relativista enquanto vive, fala, escolhe o sabor do sorvete ou se apaixona.
Quem se diz relativista é apenas alguém que ainda não se esclareceu.

sexta-feira, setembro 02, 2005

Herdeiros

"La grande y, a la vez, esencialísima, elementalísima averiguación que va a hacer el Occidente en los próximos años, cuando acabe de liquidar la borrachera de insensatez que agarró en el siglo XVIII - y que ahora está vomitando -, es que el hombre es, por encima de todo, heredero. Y que esto y no outra cosa es lo que le diferencia radicalmente del animal. Pero tener conciencia de que se es heredero es tener conciencia histórica."
Ortega y Gasset