Descaminhos: Descatastrofização

quinta-feira, setembro 08, 2005

Descatastrofização

Quandoalguns poucos anos, numa época, contudo, muito distante da nossa, Benjamin nos falou que a era da reprodutibilidade técnica aniquilava a aura da obra de arte, não desdobrou suas idéias até ter pensado na aura que recobre um outro tipo de evento, mas cuja aniquilação não é menos problemática: a da catástrofe. Benjamin, no mesmo ensaio, chegou a articular o movimento de estetização da guerra, mas não fechou a conclusão inevitável, embora tenha deixado tudo o que precisaríamos para fazê-lo.

A aura é a existência única, o aqui e agora rigidamente demarcados, a autenticidade da obra de arte em relação ao espaço e ao tempo. Um determinado quadro se encontra em uma determinada galeria de um certo museu (a pergunta pela desterritorialização operada pelos museus é mais do que pertinente, aliás), e sem a reprodução técnica do mesmo é necessário irmos até para contemplá-lo. Ele tem uma existência dimensionalmente determinada, e essa determinação lhe confere o adjetivo único.

Todavia não foi apenas a obra de arte que se prestou à reprodução mecanizada, espalhando-se pelo mundo, emancipando-se de suas dimensões rígidas, perdendo seus referenciais de unidade, perdendo sua aura. Também a aura das catástrofes foi pulverizada. Uma desgraça, qualquer que seja, tem dimensões muito sólidas. Aconteceu em um determinado lugar, num determinado tempo, envolvendo determinados objetos. Há uma aura aqui. Os carros diminuem a velocidade ao passar em frente a um acidente porque aquele acidente traz, como tudo que possui uma aura, um valor de culto. É natural que assim aconteça. Por trás da mera curiosidade se esconde um tipo inconsciente e degenerado de reverência. Nossa época, porém, dispõe da tecnologia necessária para esvaziar o mundo de sua aura, em outras palavras, eliminar a possibilidade de culto. Ao se negociar tão elasticamente o valor de exposição de uma catástrofe (basta pensar nas imagens dos ataques terroristas e das tragédias naturais que são repetidas ad nauseam), reduz-se a um mínimo o seu sentido e unicidade.

A maior ameaça da sociedade panóptica, esse espaço que estamos construindo, com cada vez mais câmeras e microfones em todos os cantos, não é a falta de privacidade como temem os mais paranóicos, mas criação concomitante de um mundo que se torna a cada dia mais esvaziado de valor de culto, um espaço vítreo em que a aura não é mais possível.

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