Descaminhos: Spasimi d'ira... spasimi d'amore!

segunda-feira, setembro 05, 2005

Spasimi d'ira... spasimi d'amore!

Não raro a essência do encanto de um universo estético se deixa perceber em alguma fragilidade. Sutileza que, decerto, ganha diversas formas de acordo com o universo em questão. Um traço delicadamente inesperado, um movimento discreto, uma palavra, um verso, um acorde: as grandes obras estão sempre a um passo do fracasso total e é precisamente nessa grande ameaça que reside seu poder.
Uma montagem da Tosca como a de Benoit Jacquot caminhava com firmeza em direção à perfeição. Elenco, regência, soluções cênicas, figurino, orquestra, tudo ia maravilhosamente bem até que um imperdoável descuido transforma o clássico de Puccini num dramalhão à la novela das oito.
Certo, concedamos: Puccini, não fosse a música, nunca estaria muito distante de se confundir com uma telenovela: Mimi é uma chata na maior parte do tempo, Cio-Cio-San desperta tanta pena que quase nos irrita e Calaf por muito pouco não vira um galã babão por cuja desgraça torceríamos por puro sadismo. As figuras, contudo, guardam sua dignidade em detalhes que, se perdidos, arruínam a obra inteira num compasso. É o caso da Tosca de Jacquot. A indicação no libreto é clara:
“E avanti a lui tremava tutta Roma!”, diz a bela Tosca diante do cadáver do pérfido Scarpia. Está saindo do gabinete quando — seu instante de redenção, o instante que salva toda a obra — volta-se para o corpo do barão, acende à sua cabeceira duas velas que estavam à mesa do jantar interrompido, apanha um crucifixo da parede e coloca sobre o peito do homem que tentou estuprá-la e assassinar seu marido.
Não, as heroínas de folhetim e de telenovelas não são capazes dessa cena. Ao menos, não da forma sem pieguice e sem caridade estupidificada com que Floria Tosca vela o corpo que acabou de assassinar. E são justamente esses trinta segundos de cena que a versão de Jacquot, de forma extremamente sintomática, suprimiu sem mais nem menos.
Lembro-me, se falamos desses naufrágios a partir de sutilezas, de uma já clássica desgraça que acomete, de vez em quando, algumas montagens de Hamlet. No cinema (as clássicas versões de Olivier e a de Zeffirelli são apenas dois bons exemplos) ou no teatro, não é incomum removerem a cena final em que Fortinbras restitui a ordem ao caos. O pequeno lapso transforma, em menos de um minuto, o que é a maior tragédia da modernidade num fuleiro draminha pequeno burguês.
Ah, se ao menos seguissem as indicações dos autores… Nelson Rodrigues tinha toda a razão: deve-se ser burro ao montar Shakespeare!

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