Descaminhos: novembro 2008

quarta-feira, novembro 05, 2008

cum grano salis

Não faz muitos meses que um amigo antropólogo, que é versado tanto nas Escrituras quanto nas bestialidades de que são capazes os homens, e que anda a estudar, salvo engano, o que há por baixo dos hábitos sacerdotais, comentou argutamente sobre a possibilidade de se justificar pela Teologia a iniciativa das ações afirmativas. Segundo ele, está tudo tradicionalissimamente documentado nos capítulos 6 e 7 do Genesis, quando, sob diviníssimas instruções, Noé proporciona a cada espécie, a partir de critérios universais e quantitativos, sua oportunidade de sobrevivência.
Mas devagar com o andor! Embora tenha o incontestável mérito de reconduzir as extravagâncias do nosso admirável mundo laico às suas bases mais tradicionais, à oportuna observação devem ser acrescentados quatro intempestivos escólios que, muito embora não a desmintam, mitigam-na (ou radicalizam-na, sob outro aspecto, conforme nossa posição em relação à arca), de modo que são de mister nesses tempos de ações afirmativas.
Em primeiro lugar, é de se fazer notar a força persuasiva que critérios quantitativos possuem nessas horas tenebrosas. Critérios quantitativos sim, e supostamente justíssimos, pois a salvação dos bichinhos, ao menos nesse caso, não exigiu ínfimo resquício de mérito individual. Não se salvaram por obras, é claro, e tampouco parecem ter sido salvos por algum tipo de predestinação. Tudo se passa como se, no fim das contas, a salvação randômica fosse o modelo mais verossímil de justiça em tempos de desespero.
Em segundo lugar, quando a porca torce o rabo — e ela sempre o torce —, os critérios quantitativos não são tãããão exclusivamente quantitativos assim, e logo se descobre que some animals are more equal than others. Porque para cada sete casais de animais puros (ex omnibus animantibus mundis tolle septena septena), um único casalzinho impuro foi aceito (de animantibus vero non mundis duo duo). O Genesis nada conta sobre os protestos dos leitões, por exemplo, mas é de se deduzir que tenham gritado até os pulmões estarem estufados de chuva.
Em terceiro lugar, e isso talvez soe politicamente incorreto, é muito importante observar que a retórica do quantitativo não se mostra bazofiadora apenas quando se saca da manga a distinção entre bichos puros e impuros (e qual mente perturbada ter-se-ia esquecido dela?!), mas os septena septena e os duo duo são apanhados em masculum et feminam (vão dizer que vocês acharam mesmo que a arca era lugar pra sodomia?!). Os impuros, enfim, até são salvos na razão de 1/7, mas os bichos de cardápio desnaturado, o que decerto incluiu vegetarianos...
Em quarto e último lugar, nunca pode ser esquecido que, ainda que a salvação quantitativa seja uma alternativa com precedentes bíblicos, uma tal idéia só entra em circulação quando o próprio Deus se arrepende de ter criado o homem na terra (pænituit eum quod hominem fecisset in terra), quando Seu coração se enche de profunda dor (et tactus dolore cordis intrinsecus); quando a coisa fica preta, enfim, e o mundo está prestes a acabar.