Descaminhos: outubro 2012

segunda-feira, outubro 08, 2012

Considerações sobre a sklerokardia

Mas é impossível determinar os contornos do conflito em que se encontrava a rainha de Ítaca. Os indícios trazem algumas ambiguidades (e que indício nessa vida não as traz?). É da natureza dos conflitos, afinal, desdobrarem-se numa mise en abyme.
Para além daquele conflito que se desenrola entre suas circunstâncias adversas e um senso de dever (consigo mesma, com o marido, com Ítaca, e até com algumas divindades: são deveres distintos e não necessariamente compatíveis), é possível, embora Homero não possa ser culpado de tal suspeita, que houvesse em seu coração uma batalha entre seus desejos, de um lado, e sua compreensão do que é certo, de outro. Com mais de uma centena de pretendentes, ora, é pouco provável que nenhum lhe despertasse uma mínima afeição.
E, ainda que aceitemos que nenhum dos cento e oito pretendentes conquistara ao menos sua consideração, ainda que consideremos sua natureza ser tão fiel quanto a tradição nos relata, não teria a rainha, em algum momento de suas madrugadas, desejado desejar um daqueles pretendentes de modo a se libertar, assim, do fardo quase insuportável da espera? Ou, ainda que aceitemos que o amor que a unia a Odisseu era tão grande quanto sempre se contou, e, na verdade, por isso mesmo, não teria a rainha, nem por um instante, desejado pôr os olhos no cadáver daquele a quem mais amou a fim de, depois de tantos anos, sentir finalmente sua vida recomeçar?
Qual o limite entre tal nível de esperança e um gesto com o qual já se estivesse tentando os próprios deuses? Aliás, tratar-se-ia realmente de uma espera ou não estaria Penélope, tal como uma Xerazade, engenhosamente ganhando tempo? Ocultaria planos de que nem suspeitamos? Ou talvez ganhasse tempo mesmo sem engenho, mas cheia sim é de desespero, procrastinando o momento de uma decisão que acabaria sendo forçada a tomar. Ou, desçamos mais um degrau, talvez tivesse colocado sua astúcia a serviço de uma mera covardia e maquinado todo esse artifício apenas para se eximir da responsabilidade de decidir.
Sim, são todas considerações demasiado, insuportavelmente modernas: trariam náuseas ao Olimpo. E, contudo, para nós, nós que temos os corações endurecidos, soam todas verossímeis. Sempre é possível, aliás, arriscar hipóteses ainda mais sombrias, as quais, é verdade, com frequência dizem mais das circunstâncias de quem as levanta do que da situação em questão. Talvez, ouso supô-lo, não houvesse conflito algum e para Penélope a mortalha de Laerte fosse meramente um mórbido passatempo para o tédio de seu coquetismo.

quarta-feira, outubro 03, 2012

Da importância da releitura

Kafka repetiu um punhado de vezes que o principal pecado humano é a impaciência. Por causa dela somos expulsos do Paraíso; por causa dela não nos é possível retornar.
Sim, sem textos a vida não se digere, não se compreende, mas digestão e compreensão não podem jamais ser fins em si. Digere-se e compreende-se, afinal de contas, aquilo que se quer viver melhor. Ou aquilo que se precisa entender não dever ser vivido novamente. Todavia, o esforço têxtil é repleto de seus perigos. Há sempre o risco de o texto se adiantar demais, não esperar pela vida, e de, perdendo-se e tropeçando em si mesmo, começar a remeter tão somente a si, destruindo-se como um estômago que se digerisse. Bem como há o risco de o texto, impaciente pela vida que não chega, repetir-se tanto, evocar tão sofregamente os seus momentos mais verdadeiros que acaba por encontrar suas mais caras palavras esvaziadas pelo desgaste de um cotidiano estéril, banalizadas demais para comunicarem o que precisa ser comunicado. Ou ainda o risco, igualmente terrível, de repetir tão exaustivamente os momentos que a vida implora para ver passarem que acaba por encher de carnes um fantasma que talvez quisesse apenas ser esquecido. É preciso, portanto, esforçar-se simultaneamente por um destecer, por um equilíbrio que é, no limite, uma tarefa infinita, sendo inevitável que, ao menos em certa medida, a vontade de viver acabe desastrosamente implicando autofagia, banalização e fantasmagoria.
É mister suportar o silêncio, inventar o destexto. Afinal, é verdade, nem todo mundo tem algo a dizer. Seja por simplesmente não ter ainda, ou por já não tê-lo mais; seja por já tê-lo dito copiosamente, ou por ter tentado fazê-lo; seja pela resignação de saber que talvez seja impossível dizer tudo aquilo que realmente importa, que talvez haja tão somente uma meia dúzia de palavras mágicas que hão de ser repetidas como numa prece, como num gesto de polimento, até que seu desgaste se converta em novo brilho. Se considerarmos que o polimento é impossível sem um meio abrasivo, não descobrimos que essa repetição possa ser, no fim das contas, uma forma de destecer?
Uma Penélope que não destecesse fracassaria tanto e quase tão rapidamente quanto uma que não tecesse. Uma vez que as circunstâncias do mundo (o contexto: guerra, caprichos de deuses, encantamentos, ciclopes e todo um oceano fortuito de desejos alheios que escapam totalmente ao seu controle) estão em conflito insolúvel com as circunstâncias de seu espírito (o pretexto: a convicção de uma consciência que simplesmente sabe o que é o certo a se fazer), é pelo equilíbrio precário e perigoso de um tecido a se destecer que ela conserva o que precisa ser conservado até que, finalmente, um dia… bem… não, não, isso ela não tem como saber