Notas sobre um cartesianismo popular
Até onde sei, das diferentes versões da história de
Barba Azul, seu sombrio castelo cheio de portas fechadas e sua nova esposa,
nenhuma delas assume a possibilidade de que, dessa vez, o soturno nobre pudesse
realmente se encontrar apaixonado pela jovem que desposava. Não é totalmente claro
se ele já o estivera alguma vez outrora, se o estivera pelas esposas que agora
assombravam o castelo como cadáveres, e em que medida o teria estado. Os
fatos, contudo, tornam essa hipótese pouco promissora.
Embora seja concebível que Barba Azul tivesse sido
genuinamente apaixonado por cada uma das esposas que, por esses caminhos esquisitos
e tão frequentemente sórdidos das paixões, viera a assassinar, é sem dúvida
mais provável, a se levar em conta o destino que as pobres moças tiveram, que elas
nunca tivessem representado para ele mais do que o ensejo de vazão de suas
pulsões mais violentas, ou meramente de seu tédio desmedido. Talvez fossem um
simples ponto de repouso na beleza, fuga desesperada de sua proverbial e provavelmente
insuportável feiura. Nós simplesmente não temos como sabê-lo com certeza, mas
às vezes, e ousemos dizer que em geral, a aparência mais óbvia tem mesmo um
bocado de verdade.
Contudo, creio, há indícios de que dessa vez
poderia ter sido realmente diferente. Enquanto, na versão de Perrault, ao
viajar, o nobre entrega à nova esposa todas as suas chaves, incluindo aquela do
quarto que jamais deveria ser aberto, na ópera de Béla Bartók ele lhe implora
que ela desista das portas, que confie nele e o ame, mas não se recusa a
abri-las quando a jovem insiste.
É fácil encaixar a esposa de Barba Azul no tipo
precedido por Eva ou Pandora e pensarmos nela como mais um dos inúmeros
símbolos dos perigos de uma curiosidade desorientada e dos infortúnios que ela invariavelmente
acarreta. Contudo, prefiro recordar que a esposa não arrombou porta alguma. As
chaves lhe tinham sido dadas. Ou, como vemos na versão operística, Barba Azul
não se recusou a abrir as portas, ainda que implorasse à jovem esposa que ela
desistisse. Assim, não parece se tratar de mera curiosidade desgovernada, mas
do jogo de infantil perversidade de uma insegurança que impõe provações mútuas
na tentativa de encontrar as garantias e os limites da possibilidade de confiança.
Creio que, em sua insegurança pueril, a jovem
esposa estivesse mais inquieta com a possibilidade de que a chave do quarto
proibido não funcionasse do que com o que realmente pudesse estar por trás da
porta. Afinal, o medo de que nos seja vetado o acesso a certas regiões da alma
do objeto amado pode ser, e frequentemente o é, muito maior e mais fundamentado
do que um medo concreto do que pudéssemos realmente encontrar em tais regiões. Nossa
capacidade de perdoar uma pilha de cadáveres, afinal, pode se mostrar
surpreendentemente maior do que a lógica e o bom senso achariam razoável.
Ele, por sua vez, em sua insegurança de velho, de
feio; em sua insegurança de rico e poderoso; em sua insegurança de assassino
culpado; em sua insegurança de homem diante da mulher amada, que tem olhos
bastantes para vê-lo velho, feio, rico e apaixonado, e ouvidos bastantes para
não ter passado imune aos rumores sobre as ex-esposas misteriosamente
desaparecidas; creio que seja legítimo acreditarmos que o velho Barba Azul, em
sua velada insegurança, enfim, ao entregar suas chaves ao poder da jovem, estivesse
desesperadamente testando não a sua obediência, como ordinariamente se crê, mas
sua confiança.
O que um e outro anseiam é ser amados sem
reservas, mas um amor incondicional que não negasse qualquer chave seria o
mesmo que não as pediria jamais e, uma vez que as tivesse recebido, não
buscaria testá-las. Aqui, como em tantos outros inumeráveis lugares, é essa
necessidade furiosa de certezas que esmigalha o que poderia haver de
verdadeiro, belo e bom.
Todos sabemos que há portas que não podem ser
abertas, portas cuja abertura não pode senão implicar nossa aniquilação; ao
mesmo tempo, após a ultrapassagem de certas esferas do enlaçamento amoroso, não
queremos — e, em certo sentido, não temos sequer o direito — de mantê-las
fechadas. Talvez essa seja, afinal, uma das mais bem sucedidas imagens do
precário e quase impossível equilíbrio da confiança de que os amantes
necessitam: a solene e resoluta entrega ao outro das chaves de nossa própria
destruição, com a confiança — nunca completamente fundamentada — de que não
serão usadas contra nós.
1 Comentários:
Taí um texto que eu adoraria ter escrito...
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