Uma última porta
Uma mensagem, um relato, um anúncio, uma confissão,
uma profecia: certas informações têm o poder de num instante transformar, de
modo irreversível, nossa própria existência e a maneira como a enxergamos, o
poder de santificá-la ou condená-la, convertê-la ou assombrá-la, corrigi-la ou
esmagá-la.
Poucos temas foram tão retratados na iconografia
cristã quanto a annuntiatio nativitatis Christii, em que o anjo Gabriel anuncia à Virgem que ela conceberá o filho de
Deus, sendo mesmo difícil encontrar um grande mestre, particularmente no
período medieval e renascentista, que não tenha dedicado ao menos uma obra à
cena. Botticelli, Da Vinci, Caravaggio, Giotto, Murillo, Donatello, Rubens, só
para mencionar alguns dos mais conhecidos, reproduziram-na em pinturas,
afrescos, esculturas. El Greco, só ele, pintou mais de uma dezena de vezes essa
cena que a tradição tornou o primeiro mistério gozoso do Rosário, alegoria
plena da humildade. E num instante a Graça se derrama, Maria bendiz a
Providência e reatualiza o relato não apenas de sua própria existência, mas o
de toda a história humana. Num extremo oposto, no que pode ser lido como uma
paródia ou avesso mórbido da Anunciação, o mensageiro imperial de Kafka carrega
através de multidões infinitas e espaços intransponíveis a mensagem importantíssima
que o Imperador, de seu leito de morte, destinou precisamente a ti, que fazes de
tua vida a espera pela mensagem que jamais chegará.
Na teoria
da tragédia, principalmente, mas também na da comédia e na da épica, a
anagnórise é o momento de reconhecimento em que, desde Aristóteles, a passagem
da ignorância ao conhecimento leva as tensões acumuladas a reverterem
decisivamente a ordem dos acontecimentos e à produção de amor e ódio. O
filósofo é claro nesse ponto: para fins trágicos, a peripécia não deve ser
aleatória ou engendrada por forças superiores, mas sim resultado direto do
reconhecimento da hamartia, o erro trágico fatal causado por hybris
ou por ignorância. Ou por uma mistura de ambas. Note-se, contudo, que não apenas
uma atualização da compreensão do que se passou, mas também a informação
profética do que ainda está por vir pode desencadear ou produzir efeitos
terríveis: a tragédia de Macbeth o ilustra de forma que nos é particularmente
próxima e as self-fulfilling
prophecies de Robert Merton poderiam trazer um vernizinho científico ao tema.
Todavia,
sabemos, o tecido ordinário de nossas vidas não se fia habitualmente em motivos
tão solenes, heroicos ou demoníacos. Não é que erremos pouco, mas mesquinhos,
covardes e atrapalhados que somos é raro termos a chance de errar gravemente,
porque raramente nos aproximamos do que é grave. E, mesmo quando chegamos a
fazê-lo, fingimos por costume que o deixamos preso num cercadinho enquanto fomos
logo ali nos divertir. A frivolidade que nos protege do desespero trágico é a
mesma que nos desterra do heroísmo ou da redenção.
Num mundo
em que anjos não mais seriam bem-vindos, em que profecias tendem a ser motivacionais
e decisões se esforçam por ser tecnicamente administrativas, num mundo em que se
é incentivado a se perdoar a si mesmo — como se tal barbaridade fizesse algum
sentido! —, e em que o próprio Mal é sempre visto como remediável, num mundo em
que sequer se aguarda a mensagem que não chegará e em que, na impossível
conjectura de que chegasse, se estaria pronto a afirmar que ela é apenas mais
uma opinião (que teria, decerto, de ser respeitada, ainda que não fosse
compreendida, como se a pose de respeito diante do que não se compreende não
fosse, ela mesma, a mais covarde figura do desrespeito), nesse nosso mundo,
enfim, que é tão obstinadamente refratário aos mortos, talvez a última
esperança resida justamente no relato de nossa impotência. Não a impotência do
herói que não consegue fugir da própria Fortuna, mas apenas a prosaica impotência
de assimilar certas experiências, a compreensão súbita e implacável de que
existem coisas muito além da nossa compreensão; não apenas entre o céu e a
Terra, mas logo ali, entre um lado e outro da mesa.
Talvez a
última esperança, afinal, resida no relato que, em vez de nos indicar um futuro
glorioso ou uma danação sobrenatural, em vez de nos elevar à gravidade do
reconhecimento de um erro trágico pelo qual sejamos responsáveis e de nos
forçar a compreensão de que nós não somos quem achávamos ser, seja o relato
de que os outros, os que amamos, possuem experiências que superam nossas
próprias forças. Nesse tipo de existência, esse jogo configurado na chave
"o que ainda dá pra fazer mode on", o que resta para nos
esmagar não é culpa ou responsabilidade, não é esperança ou desespero, mas tão
somente o amor na sua versão mais impotente e excruciante: a compaixão, talvez
uma última porta para o divino.
Pensemos,
por exemplo, no desfecho de The Dead, de Joyce. Gabriel Conroy é alguém
tão mergulhado em sua frivolidade que nada do que lhe fosse diretamente revelado
a respeito de si próprio poderia tocá-lo de verdade. Com um gracejo
pretensamente espirituoso, estaria pronto para relativizar qualquer
responsabilidade. Contudo, a revelação de que Gretta, sua esposa, suportava há
tantos anos, com silêncio e dignidade, o peso inimaginável da recordação do namorado
de infância morrendo por sua causa o abala de maneira muito mais profunda do
que se tivesse descoberto a si mesmo culpado por um assassinato.
A
frivolidade aqui de nada serve; enfim um recanto que ela não atrofia! Como
dissimular que não sentimos uma dor que de fato não sentimos e cuja mera
imaginação parece nos esmagar? Ela não vem dos sentidos ou da memória real de
uma história vivenciada que pudéssemos relativizar, reinterpretar ou esquecer,
mas é a dor inferida a partir de uma história narrada que é, como bem descreveu
Kundera, "multiplicada pela imaginação, prolongada por centenas de
ecos". Nos casos mais extremos, acontecerá de acordarmos à noite com imagens
que nunca vimos e gritos que nunca escutamos: com fantasmas que não são do além-mundo
do nosso mundo, mas de um mundo que está bem ali do nosso lado, diante do qual
somos humilhados em nossa absoluta impotência, um mundo que amamos e em que,
contudo, não podemos jamais repousar.
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