Descaminhos: Fearful Symmetry

segunda-feira, maio 16, 2011

Fearful Symmetry

Lembro-me de uma passagem dos Pensées em que Pascal observa, em tudo inspirado por Santo Agostinho, que a virtude não é algo em que nos sustentamos por nossa própria força, mas que é apenas par le contrepoids de deux vices opposés que nos mantemos de pé, num sinistro equilíbrio de vícios, dores e enganos que, em seu conjunto simétrico, permite que a vida não se destrua. O caminho seguro para se livrar de um vício é colocando outro no seu lugar. Livrássemo-nos de um deles sem eleger substituto, o peso de todos os outros nos esmagaria.
Semelhante simetria sustenta nossas saudades. A saudade daquilo que não foi, ou do que em algum momento se acreditou que poderia ter sido, é apenas o contrapeso necessário da mais concreta saudade do que de fato se era e se deixou de ser. É graças a essa simetria, e possivelmente apenas graças a ela, que nem essa, nem aquela saudade nos engole. O equilíbrio se desdobra e ecoa em dois níveis: pois, se é apenas graças a doses desmedidas de esquecimento que se pode acreditar na existência pretérita de alguma propriedade, seja real ou pretendida, base da sensação de falta, é também apenas graças ao esquecimento que se consegue acessar a sensação de que tal propriedade era boa. Esquecemo-nos do tanto que perdemos, e conseguimos acreditar ter ganhado algo; esquecemo-nos dos piores traços daquilo que acreditamos ter ganhado, e conseguimos acreditar que fosse algo bom. E é apenas assim, à base desse duplo esquecimento, que as saudades nos enganam e ludibriam nossa vaidade, fazendo-nos acreditar que em algum momento algo valeu a pena. Pois tal crença, contudo, por pungente que seja, é o que pode dar alguma dignidade a um passado em si mesmo repleto de trivialidades.
Numa de suas belas imagens, Hugo von Hofmannsthal se refere num poema a uma saudade sem nome, ein namenloses Heimweh, que em silêncio chorasse pela vida, e a compara à melancolia de quem passasse à noite, a bordo de um navio, pelas margens de sua cidade natal. Veria de longe os becos de outrora, ouviria o murmulho das fontes e sentiria o perfume dos lilases, a luz acesa em seu quarto lhe acenaria involuntária, mas o navio o arrastaria para mais e mais longe de tudo o que ele acreditasse ter sido e ter podido ser.
Quando não se pode ou não se deve matar a saudade, seria bom que não fosse tão difícil deixá-la morrer.

4 Comentários:

Blogger Nathália. disse...

Disseram-me dia desses que a saudade é uma forma de nos fazer sentir mais.
Nesse sentido, talvez tendo conhecimento do valor do que perdemos no passado, saibamos aproveitar melhor o que está hoje presente e, quem sabe, a gente sinta e se faça sentir mais no futuro...

16 de mai. de 2011, 13:16:00  
Anonymous Anônimo disse...

lhe acenaria voluntária.

16 de mai. de 2011, 15:13:00  
Anonymous Marina disse...

"A gente mal sabe que males se apronta
Fazendo de conta, fingindo esquecer"
;*

23 de mai. de 2011, 09:56:00  
Anonymous Anônimo disse...

Foi o primeiro poema que me fez chorar.

15 de jun. de 2011, 23:45:00  

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