Descaminhos: Vae mundo

terça-feira, abril 12, 2011

Vae mundo

Há um quê de ladra na ironia, que rouba a casca significante da linguagem como o lobo a pele da ovelha. De modo dissimulado, indica assim o que não consegue plenamente dizer. Há nela um quê blasfemante, pois no momento mesmo em que é compreendida, e portanto revelada enquanto tal, vitupera prometeicamente a sacralidade da linguagem.
Ladra porque sempre ilegítima: é evidente que o uso de qualquer ironia provoca desníveis entre as experiências de quem fala e ouve, escreve e lê; detona uma descamação no sentido do texto, e a principal função disso é, decerto, roubar parte do chão do leitor e de sua pose confiante de que ainda sabe sobre o que exatamente se está falando. Cria escândalo, no sentido evangélico preciso do termo. Essa desorientação pode funcionar como ensejo para um pontual esclarecimento, uma tomada de consciência da profusão de mapeamentos absurdos que, de início e sempre, precisam ser oportuna e estrategicamente tomados como razoáveis para que raciocínios os mais simples se estabeleçam. Ou sejam sequer formulados. De início e sempre, repito, porque em momento algum a proposta poderia ser remover esses mapeamentos absurdos, os quais, como crenças elementares, são condição de possibilidade de todas as tomadas de posição. Não se trata nem mesmo de esperar que alguém troque as crenças a partir das quais fala; isso seria um outro movimento, mais próximo mesmo de uma catequese, onde a ironia dificilmente seria bem-vinda. Menos catequista e mais terapêutica, a ironia deveria funcionar como a água fria que baixasse a bola de quem perdeu a dimensão da fragilidade — e, no limite, da insustentabilidade radical — do literalismo de toda e qualquer posição. Ela está a lembrar que o mapa é só um mapa. É muito mais que catequese: é conversão.
Por tudo isso, o desnivelamento não é apenas um efeito colateral da ironia, é seu princípio ativo, e quem recorre à ironia esperando ser plenamente compreendido mostra com o ressentimento da incompreensão a mera vontade da pose de engraçadinho. Como nos lembra Mann em seu ensaio sobre Chamisso, ela quase sempre significa construir uma superioridade a partir de uma carência. O engraçado e o gracejo são figuras da desgraça. Ironias plenamente compreendidas são como metáforas que se tornaram catacreses: uma experiência estéril, cristalizada, decaída, a qual, instrumentalmente, ainda que não sem certo gracejo, consegue se prestar apenas como moeda de troca num comércio entre coisas e palavras, sem contudo provocar ainda qualquer pensamento que mereça esse nome. Plenamente compreendida, seria como uma ladra que roubasse algo de que não precisa, que sequer deseja, e já lhe tivesse mesmo sido dado.
Assim como houve o bom e o mau ladrão, há a boa e a má ironia. Há o bom e o mau escândalo, provocados por boas e más ironias. Escândalo é o momento de perplexidade diante da contradição, da blasfêmia, da equivocidade. É o momento da tentação, em que a integridade do espírito é perturbada, é o momento em que se perde a confiança na estabilidade da própria ordem no interior da ordem do mundo. É quando a ordem do mundo, que espelha a ordem do espírito e nela se faz espelhar, se torna o princípio do desordenamento do espírito. O lado mau do escândalo, efeito colateral de todas as blasfêmias, elas mesmas inevitáveis, é a desintegração do que não se queria desintegrar, a serração do galho sobre o qual se senta. Em virtude de seu lado bom, entretanto, o escândalo quebra a sedimentação esterilizante do que precisa continuar vivendo. Tenta tornar uma vez mais a catacrese em metáfora. Nesse caso, o escândalo não é ocasião de queda, desgraça, desesperança, mas sim de contrição, metanóia, conversão.
Tudo isso, é claro, num conta-gotas impossível. Não se separa a boa ironia da má, tanto quanto não se separa, de direito ou de fato, o bom fármaco do mau. A ironia está para a imbecilidade como a quimioterapia para um corpo com tumores.

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