Descaminhos: Nossas mentiras

sexta-feira, agosto 06, 2010

Nossas mentiras

Sempre se soube e sempre se esquece: limitações da linguagem freqüentemente nos lançam em variados embaraços, distorcem percepções, convencem-nos de absurdos, inauguram e alimentam expectativas e podem nos mergulhar, em casos extremos, na miséria, na angústia e até no desespero do homem diante de quem os sentidos com que se conta desmoronam no choque com um mundo que pouco tem a ver com nomes. Não apenas alguns dos grandes problemas filosóficos podem ser considerados armadilhas da uma linguagem inadaptada a tal tarefa, como tantos defendem; diversas de nossas mesquinharias, pusilanimidades mesmo, devem-se às deformações profundas que más metáforas impõem ao nosso caráter. É estranho, por exemplo, que tão pouco nos escandalizemos com a promiscuidade dos pronomes possessivos, essas palavrinhas com que, num impulso furioso, salpicamos a granel todo tipo de pensamento.
Algumas línguas guardam importantes distinções: muitas reconhecem, por exemplo por meio de afixos, uma diferença fundamental entre possessões alienáveis, geralmente conquistadas com algum esforço, e as inalienáveis. Na língua maori, a escolha entre um ou outro possessivo na expressão "tenho os olhos de minha amada" deixaria claro se estou dizendo simplesmente que meus olhos se parecem com os dela ou se por algum bom motivo os arranquei e agora morbidamente os carrego comigo. Na língua luo, clássico exemplo, ao dizer "o osso do cachorro" uma sutileza fonética há de esclarecer se me refiro a um osso que constitui o esqueleto do cão ou a um osso que ele agora se compraz em roer.
A língua yabem distingue da relação de possessão que há na propriedade de um bem (a ovelha do pastor) a especificidade da relação de possessão que há entre uma parte e seu todo (os galhos da árvore). A língua chichimeca tem pelo menos doze diferentes classes de construções possessivas. O massai, por sua vez, distingue em meio aos seus nomes aqueles que designam coisas que podem (animais domésticos, ferramentas) e aqueles que designam coisas que não podem (animais selvagens, fenômenos da natureza) ser possuídas. Em georgiano, distintos verbos nomeiam a posse de objetos animados ou inanimados.
Ao utilizar os mesmos termos e uma mesma sintaxe para descrever relações tão díspares entre nós e o mundo é muito fácil perder de vista as diferenças, afundar na indistinção. Estou convencido: uma parte considerável de nossos problemas, nos mais variados níveis, deve-se a metáforas que se tornaram catacreses.
Se posso propriamente falar em meu sapato, que pode deixar a qualquer momento de ser meu, perdido ou roubado, que posso dar, vender ou destruir, e se não é exatamente essa relação que tenho em vista ao falar de meu pé, certamente não é mais nada disso o que está em jogo quando digo meu coração, condição de possibilidade da permanência de todas as outras posses. A noção de posse, aqui, é substancialmente diferente em cada um dos casos. Apenas por uma certa falta de escrúpulos metafóricos chego a me referir ao coração com a mesma sintaxe com que me refiro a sapatos e não deveria haver tanta surpresa se aquele chega a ser pisoteado.
Quando digo meu relógio, esse objeto que me pertence e sobre cuja existência tenho tanto poder quanto se é possível ter sobre algo nesse mundo, podendo de fato fazer com que, de um instante a outro, ele simplesmente deixe de existir, patentemente não designo aí o mesmo tipo de relação que quando digo meu tempo, essa difusa responsabilidade que tenho de fazer algo com a vida, essa relativa capacidade de organizar atividades, que, se tenho em alguma medida, acaba por me ter em outra tanta, definindo boa parte do que sou. Matamo-lo, como lembra Machado, mas é ele que nos enterra.
Digo minha língua, minha cultura, minha família ou meus valores, como se de fato estivesse em uma relação com essas coisas antes da qual eu já fosse eu mesmo, o que não é de forma alguma verdade: tudo o que sou é já a partir dessas relações, das quais não posso jamais prescindir. Digo minhas idéias, ou minhas lembranças, como se pudesse trocá-las conforme minha vontade, que me devora e constitui. Há coisa menos nossa, afinal, do que o desejo?
Mesmo ateus exclamam meu Deus, mas quem diabos sabe o que isso quer dizer? Meu amor, chamam os amantes, chegando ao tom do desespero na reivindicação da posse de algo que não sabem o que é e que, na mais honesta das hipóteses, se limitam a quererem querer. A pior propriedade não é tanto a que é eventualmente um roubo: a dos amantes, ah, é invariavelmente arroubo.

5 Comentários:

Blogger Roberta Estevam disse...

belo

7 de ago. de 2010, 16:03:00  
Blogger Sally disse...

Adorei!!

7 de ago. de 2010, 22:13:00  
Blogger Nathália. disse...

Os pronomes possessivos nos enchem de uma certeza que para nós é essencial. Acreditando que temos algo, que sentimos algo, que é "meu", "seu", "nosso", cremos que estamos indo em frente, que estamos mudando. E o ser humano, sempre insatisfeito, precisa crer que domina algo para não enlouquecer com suas incertezas. É até saudável, se você não surtar no meio do caminho. :p
Ah, só pra constar, gostei do texto.

9 de ago. de 2010, 21:38:00  
Anonymous Sofia disse...

você tem msn?

13 de out. de 2010, 23:19:00  
Anonymous Anônimo disse...

Aiii chefe! a menina que ta do seu lado tá olhando sua conversa no msn e quer ficar contigo! o nome dela é raquel

2 de dez. de 2010, 15:19:00  

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