Descaminhos: Da delicadeza

sexta-feira, novembro 24, 2006

Da delicadeza

Talvez a brutalidade do século XX seja o fator responsável pela suprema delicadeza de nosso tempo. Tal brutalidade é hoje incompreensível. A palavra evoca uma vaga e rarefeita idéia que, embora não mais comunique efetivamente uma experiência, ainda cumpre bem o seu papel nos discursos de lamúria e de escândalo. Se antes de sua exaustiva repetição tal idéia foi de fato compreensível um dia, ou se pelo menos sua palavra se prestava a indicar a positividade de uma ocorrência nefasta, esse decerto não é mais o caso para as gerações contemporâneas, que não mais são capazes de extrair dela qualquer sentido, pois o mundo se tornou delicadíssimo, a despeito ou por causa de sua história recente e tão supostamente brutal.
Delicadeza que se expressa na afetada reivindicação por respeito e na virtualmente ilimitada capacidade de compreensão de uma suposta alteridade. O mundo se tornou de fato tão delicado que desapareceram como num piscar de olhos os diversos códigos de delicadeza que as gerações mais antigas cultivaram a um preço e esforço que mal conseguiríamos conceber. Hoje é delicado ser informal. Se tudo mergulhou na aura da informalidade — da linguagem aos sentimentos, passando pelos gestos e gostos, vestuário e compromissos — não é exatamente por termos nos embrutecido, mas por termos nos tornado delicados de fato, num sentido que causaria náuseas a homens que iam de cartola ao teatro e mulheres que usavam espartilho. Pois então a delicadeza era um modo possível de comportamento, e não uma propriedade das pessoas. O sentido de códigos de delicadeza era a explicitação não de uma natureza simples e obviamente delicada, mas da cultivada capacidade de agir delicadamente. Somente nesse sentido a delicadeza poderia aparecer como algo gracioso, pois tornada essencial dificilmente se pode diferenciá-la da mera frouxidão.
Não precisamos mais agir delicadamente porque nos tornamos delicados de fato. É como se os lábios não mais precisassem sorrir graciosamente porque todo o resto já sorri estupidificado. Com mais um pouquinho de dedicação a humanidade realizará em breve o supremo ato de delicadeza, e dará uma generosa gorjeta aos seus carrascos.

9 Comentários:

Anonymous Anônimo disse...

acho que a delicadeza necessária ainda está por vir. ainda são poucos os homens de tato.

27 de nov. de 2006, 16:47:00  
Anonymous Anônimo disse...

Parabéns pelos grãos...hehe
que floresçam...
um abraço!!

2 de fev. de 2007, 17:26:00  
Blogger Evah Nick disse...

achei seu blog perdido pelos orkuts da vida..
gostei..
aidan lendo uma parte...
e bem a delicadeza...
algo paradoxal...

22 de mar. de 2007, 23:23:00  
Anonymous Anônimo disse...

Gabi.. precisando atualizar, hein, querido...
Bjos!!!

11 de mai. de 2007, 17:43:00  
Anonymous Anônimo disse...

É sempre bom ler seus textos, Gabriel (mesmo que seu blog sofra poucas atualizações)!

A delicadeza é equivocadamente substituída pela ausência de caráter que possibilita um disfarce social, psicológico, um apelo a ângulos do ser que não deveriam ser de fato considerados determinantes... E acaba por tornar as pessoas, tocando em um ponto que você discutiu em um outro texto, transparentes demais, sem grandes aspirações. Eu imagino que isso aconteça por causa de toda a superficialidade que ronda o quotidiano, tornando-o mais cômodo e prático, mas frio e dotado de senso comum.

16 de jun. de 2007, 00:05:00  
Blogger Gabriela Pereira disse...

Delicadamente perfeito.
Adorei.



Parabéns pelo blog.

2 de fev. de 2008, 01:30:00  
Blogger Nathália. disse...

A delicadeza deve vir com tato. Ir contra a "delicadeza" humana atual pode levar à apatia, que é igualmente detestável. Ainda acho preferível ser efusivo do que ser vazio.

19 de set. de 2010, 21:39:00  
Blogger Marcus Fabiano disse...

sempre desconfiei dos muito delicados!

12 de abr. de 2011, 01:59:00  
Blogger Flávio Gordon disse...

"Oisive jeunesse
À tout asservie;
Par délicatesse
J' ai perdu ma vie"

(Rimbaud, Chanson de la Plus Haute Tour)

22 de nov. de 2012, 11:37:00  

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