Descaminhos: Vanitas vanitatum

quinta-feira, junho 01, 2006

Vanitas vanitatum

Matreiro admoestou o demônio: “Bedenk es wohl, wir werden’s nicht vergessen!”, e no entando os homens se esquecem, não obstante o pacto corra às mil maravilhas. ‘Tomai cuidado, pensai bem!, nós não nos esqueceremos!’, avisam as forças infernais nos instantes que antecedem o pacto. Avisam com a franqueza única dos demônios, de cujo charme faz parte enganar dizendo apenas verdades: ‘pensai bem, porque diabo tem memória!’, o que equivale a dizer: ‘vós vos esquecereis, mas isso não importa xongas!’.
O esquecimento daquilo que perdemos acompanha a ilusão de que tudo podemos ter — senão de fato, pelo menos de direito. Nosso tempo oferece a convicção de que é possível a existência sem cessões. E a arrogância dos possessos desmemoriados se mostra na satisfação com que desfrutam o que lhes resta, convencidos de que barganharam a própria alma, de que enganaram os demônios, de que a vida lhes saiu uma pechincha, simplesmente porque não conseguem se lembrar do que pagaram.
Por trás de toda arrogância se esconde a baixa auto-estima: somente a certeza de que a sua alma não valia muitos trocados é que permite que o demente acredite que não a vendeu.

2 Comentários:

Anonymous Anônimo disse...

Meu caro,

me causou vertigens fausticas este texto...

gosto muito daquela bem conhecida admoestação de Baudelaire: "A maior astúcia do diabo, é nós convencer que ele não existe".

O teu texto me dá ânimo a levar adiante um projeto: redigir um texto sobre "O problema do Mal em Boehme". Onde está o Mal? Onde o Inferno? onde Lúcifer? E o Bem? E o Paraíso? E Deus? Para Boehme, está sobretudo, no coração do homem....

4 de jun. de 2006, 11:04:00  
Anonymous Anônimo disse...

Impossível não lembrar (e dou ode a minha memória luciferiana!rs) de Dante lendo teu texto. Se me permite citá-lo: "A morte termina com uma história, a memória a mantém."

7 de jun. de 2006, 12:38:00  

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