Descaminhos: Do que pode haver de precioso

terça-feira, março 09, 2010

Do que pode haver de precioso

Uma vez que nosso tempo preza como nenhum outro o conforto e a fruição de estímulos prazerosos, chegando mesmo a prezá-los a ponto de os confundir com o ideal de uma boa vida, é natural que daí se siga uma demonização da dor e de toda e qualquer espécie de aflição ou sofrimento. Para um tempo em que um bom trabalho é aquele que se quer fazer, ou aquele pelo qual se é sobejamente pago, um tempo em que a boa saúde é estritamente aquela em que se podem contornar os desconfortos das doenças e prolongar a vida tanto quanto possível com o único objetivo de gozar aleatoriamente mais sensações gostosas, um tempo em que o ideal caricato de amor se desespera em busca de um monstrengo que conjugasse em um só momento estabilidade e êxtase, um tempo, enfim, em que a boa vida é aquela em que se sofreu pouco e em que a boa morte é preferencialmente anestésica, para esse tempo se anuncia a paulatina supressão da distinção entre as figuras do herói e da vítima, que tendem a se sobrepor e se confundir numa figura que época alguma julgara digna de ser cantada: um herói sem qualquer virtude notável, um herói cujo heroísmo se resume a suportar sofrimentos aleatórios que um mundo sem muito sentido lhe inflige, um herói que nada mais é do que um sobrevivente que pouco ou nada tem a fazer com a vida que carrega.

Tudo muito distinto das provações por que passavam heróis clássicos e mártires: heróis cujo heroísmo se manifestava na assunção da responsabilidade pela realização do trabalho que precisava ser feito a despeito da quantidade de sofrimento que isso pudesse causar, ou na assunção, em nome de um bem maior que sua existência, de um culpa que não era sua.

É uma indignidade típica de nosso tempo a confusão que reduz o valor das pessoas ao sofrimento por que passaram, como se fossem meramente a resistência a um mundo incompreensivelmente cruel, hostil e por vezes macabro, como se fossem enormes por terem sobrevivido ao mundo com o mérito de bactérias que resistissem a antibióticos potentíssimos, e não pelo que, a despeito de toda dor, às vezes chegam a se tornar. Ao se admirar a pura resistência material, a compaixão rouba o espaço da verdadeira admiração.

Nossos sentidos se perverteram a ponto de achar que o puro medo de cicatrizes é motivo suficiente para se fugir do que quer que seja e, como conseqüência disso, aprenderam a venerar aqueles que as carregam como criaturas admiráveis simplesmente por carregarem-nas, insultando com esse gesto tudo aquilo que pudessem ter de admirável de fato. Nossos sentidos não mais enxergam que uma cicatriz, em si e por si mesma, nunca é bela ou feia: é tudo o que se fez e faz a cada dia de todo seu contorno e sua história que pode chegar a ser belo. É todo o resto que, a despeito de um sofrimento que pode chegar ao inimaginável, se agiganta e ri desse sofrimento, ou simplesmente o ignora com certa altivez, o suporta com certa serenidade, demonstrando que o que realmente importa, a admiração que nada deve à compaixão, não se deixa reduzir a alegria e tristeza, prazer e dor.

É uma beleza que, quando surge, nosso tempo não compreende muito bem.

5 Comentários:

Blogger Joice Marino disse...

Ó lucidez funesta!



Então você também percebeu que a existência,(quem diria!)ao invés de se tornar a tão temida barbárie, o que seria mais intenso, franco, reduziu-se a um mero folhetim?





Há algo nesse pensamento que me lembra os mendigos da rua do Imperador, em Petrópolis, que colocam sujeira nas feridas para que elas não os abandonem, trazendo aos transeuntes a visão do azar, como um eco das pragas medievais como castigo a quem não ceder uma esmola.






"Síndrome de Regina Duarte" também passeia no meu pensamento.
Sem viúva Porcina, claro.

10 de mar. de 2010, 00:00:00  
Blogger Joice Marino disse...

Em tempo:



Depois que eu praguejei um pouco ali em cima, preciso dizer que me encanta a lucidez (e por que não beleza?) desse pensamento. É bom, depois de praguejar, - nao que isso seja necessário mas, hoje me permito este desleixo, arbitráriamente - ir lá para as alturas do pensamento, colher fôlego para o que realmente importa. Para o que é precioso.

10 de mar. de 2010, 00:52:00  
Anonymous Rhode disse...

Eu conversava exatamente sobre isso com alguns bons amigos hoje! E é claro, isso me causa saudades de você, coisa. :)

9 de abr. de 2010, 00:14:00  
Blogger Nathália. disse...

Tal filosofia não deve se aplicar aos animais, é importante lembrar. E não o deve por um simples motivo: nós temos escolha, eles não. Eles não tem escolha porque nós a tiramos deles, ao mantê-los presos e ditarmos o tempo de duração de suas vidas e como irão vivê-las. Uma vaca leiteira privada de amamentar e estar com seus filhotes, para que possa ter leite o suficiente, e mais do que o suficiente, para alimentar os humanos que NÃO PRECISAM deste leite para sobreviver! E as crias dessa vaca leiteira, que terão sua existência curta sendo os chamados baby beef, torturados desde o seu nascimento, privados de sua mãe, da natureza, e até de andar, para agradar o paladar do humano. Ou as galinhas, que ficam presas por toda a vida em espaço pequeno, comendo ração cheia de hormônios, mal podendo andar, viver sua vida, tendo seu bico cerrado, para impedir que escolha o alimento, para que coma tudo aquilo que lhe é oferecido, para engordar mais rapidamente para o abate, coisa de três semanas. E aquelas galinhas que para dar ovos.. elas são mantidas em locais fechados com luz constante, que confunde os seus relógios biológicos e as faz colocar ovos todo o tempo, deixando-a exaustas! Onde há nobreza, escolha ou amor à vida aí?
Eles não podem escolher, são escravizados por todos nós, e para que?
Valhe a pena?
Que arte traz consigo a destruição?

2 de ago. de 2010, 19:20:00  
Blogger Nathália. disse...

*vale

2 de ago. de 2010, 19:21:00  

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