Descaminhos: Verweile doch! Du bist so schön!

quarta-feira, maio 23, 2012

Verweile doch! Du bist so schön!

No décimo livro das Metamorfoses, Ovídio conta a história do triste Pigmalião, esse romântico avant la lettre que, em revolta contra o que julgava ser a inaceitável precariedade da realidade, recusava-se a tomar parte dela. Para Pigmalião, tão odiosos eram os vícios com que fora dotado o espírito feminino que ele vivia há tempos sozinho, mergulhado na pirracenta vaidade de seu celibato e dos elevadíssimos ideais que projetava sobre a natureza humana.
É impossível saber com certeza qual sua derradeira motivação; se foi a debilidade provocada por essa implacável solidão dos idealistas ou se foi, afinal, um gesto de audácia, essa tão romântica insanidade que cedo ou tarde leva aqueles que enxergam tantas imperfeições na realidade a se julgarem os agentes perfeitos para reformá-la. É possível, enfim, que tenha sido fundamentalmente o tédio, esse que abraça todas as afetações. Contudo, qualquer que tenha sido sua motivação, o que se sabe é que um dia Pigmalião tomou para si a mais bela peça de marfim e a partir dela esculpiu a mulher que sempre quis. É de se crer que olhos mortais jamais tivessem visto formas tão belas, pois o escultor se apaixonou desvairadamente por sua estátua, chegando a cobri-la de carícias, mimos e presentes.
Não julguemos a morbidez de Pigmalião! Afinal, o que pode haver de mais arrebatador do que a beleza cristalizada na imutabilidade de uma estátua, sempre pronta a responder, em qualquer instante em que lho seja solicitado, com a reafirmação de sua promessa de que continua a ser como sempre foi e de que assim permanecerá por todo o sempre? Não são precisamente esses, afinal, os pedidos de confirmações mais trocados por casais na aflição de seus leitos, as confirmações de que continuam se amando e de que assim permanecerão? Não é a vertigem da paixão justamente a mais frenética das agitações de um desespero que clama pelo impossível ideal da imobilidade? Afinal, não firma a rigidez do marfim um contrato de felicidade, dessa felicidade de que, em meio às mutações incessantes da vida, só ouvimos falar na forma de promessas? Não, não julguemos Pigmalião: a crueza de sua mentira é mais honesta que os delírios de eternidade de todos os enamorados.
Ovídio nos conta que o escultor se viu a tal ponto fascinado por sua própria paixão que ofereceu um sacrifício à deusa do amor, rogando-lhe uma esposa como a que fizera de marfim. Eis que a verdade de seu desejo se infiltra na mentira de sua prece: uma esposa real, sim, mas como sua estátua!
O poeta é reticente ao explicar por que, afinal, Vênus escuta as súplicas. Gosto de pensar que foi, no fundo, um castigo pela hybris do artista. Ao atender ao pedido, a deusa não encontrou senão uma forma particularmente cruel de aniquilar a precariedade de um ideal.
Na versão de Ovídio, Pigmalião entra em êxtase ao voltar para casa e decobrir sua estátua transformada em mulher. Corpus erat! Também esse êxtase, não duvidemos, é pura vaidade.
A narrativa se interrompe logo em seguida. Ovídio não nos conta nada sobre isso, mas qualquer um pode imaginar que não demorou muito para que a aflição se instalasse no coração apaixonado. Logo vieram os medos: os medos das mudanças e os medos dos medos. Logo Pigmalião, das profundezas de sua pusilanimidade mortal, ansiaria por uma felicidade petrificada. Para reaver aquela ebúrnea paz da certeza de que não poderia perder sua amada, de que ela não poderia deixar de amá-lo, de que ela não poderia se tornar, com o tempo, menos merecedora de seu amor, de que ela não poderia, enfim, desapontá-lo, frustrá-lo ou traí-lo, ah!, em troca daquela felicidade Pigmalião teria de bom grado aceitado de volta a beleza gelada e lívida de sua amante de marfim. Os deuses, contudo, não atenderam a esse segundo capricho.
Talvez houvesse ainda uma hipótese vertiginosa, que nos custasse muito a compreender. Talvez tenha havido, ou venha haver, com menor ou maior razão, quem entendesse que a deusa Vênus, embora fingindo diante dos outros deuses estar apenas a aplicar uma punição à natureza desmedida do artista, estivesse, no fundo, vingando o ressentimento da própria vaidade ferida. É que, contrariando toda a decência, todo o bom senso e mesmo toda a lógica, talvez houvesse quem dissesse que, seja para mortais ou imortais, aquela estátua tenha sido, de fato, o que de mais belo já se avistou pelo mundo.

0 Comentários:

Postar um comentário

Assinar Postar comentários [Atom]

<< Página inicial