Descaminhos: Das esferas aos círculos

terça-feira, agosto 28, 2012

Das esferas aos círculos

Há limites para o jogo de interpretações possíveis. E tais limites não precisam ser estipulados pela tradição das leituras convencionadas, por costumes ou supostas intenções originais. Ao menos para se começar a jogar, seria suficiente que tais limites fossem estipulados pela consistência que oferecessem.
Quando, como numa recente montagem da Götterdämmerung em São Paulo, se faz com que a autoimolação de Brünnhilde seja saudada por uma celebração da pluralidade de formas possíveis da concupiscência, o que se tem não é uma interpretação revolucionária ou sequer alternativa, mas uma anti-interpretação, um belo tiro no pé, o qual produz um curto circuito que esvazia qualquer sentido da obra. Afinal, o que resta de toda a tetralogia do Anel do Nibelungo quando se perde a distinção entre a renúncia de Alberich, na primeira cena da Rheingold, e a renúncia de Brünnhilde, na cena final da Götterdämmerung? Se nada houvesse além desejo e essa última cena fosse movida pelas mesmas forças que moveram a primeira, retornaríamos ao ponto inicial muito mais pobres do que estávamos no começo, pois então sequer se teria algo além de desejo a se renunciar em troca de desejo, tudo se resumindo ao fastio de um jogo de renúncias de desejos em troca de desejos, essas renúncias mobilizadas elas mesmas por desejos: mise en abyme infernal de um relativismo erótico e autorreferente. Se fosse por aí que o mundo acabasse, sequer faria sentido que viesse a começar.
Ao se extirpar da compreensão da experiência humana seu eixo vertical, extirpação essa inevitável em qualquer uma das muitas versões possíveis em que o naturalismo se apresenta, perde-se a capacidade de descrever satisfatoriamente, mesmo que de forma apenas esquemática, fenômenos dos mais triviais. Do medo à angústia, do prazer à bem-aventurança, da irritação ao ódio, do cansaço ao tédio, da afeição ao amor, da estratégia ao sacrifício, do animal ao humano: para a horizontalidade naturalista, que — no limite —, por malícia, confusão ou estupidez, aposta na possibilidade da redução de todo o espaço da realidade a um único plano, tudo o que se tem aqui seriam meras diferenças de grau, de intensidade ou complexidade.
Para uma tal mentalidade procustiana, uma renúncia é apenas cálculo, saudades são uma espécie de carência e uma vontade ou decisão não podem ser nada além de libido. Como resultado, as descrições da experiência humana resultam em caricaturas monstruosas, imprestavelmente simplistas ou francamente ridículas. Bela interpretação relinchante.

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