Das esferas aos círculos
Há limites para o jogo de interpretações possíveis.
E tais limites não precisam ser estipulados pela tradição das leituras
convencionadas, por costumes ou supostas intenções originais. Ao menos para se
começar a jogar, seria suficiente que tais limites fossem estipulados pela
consistência que oferecessem.
Quando,
como numa recente montagem da Götterdämmerung em São Paulo, se faz com que a autoimolação
de Brünnhilde seja saudada por uma celebração da pluralidade de formas
possíveis da concupiscência, o que se tem não é uma interpretação
revolucionária ou sequer alternativa, mas uma anti-interpretação, um belo tiro
no pé, o qual produz um curto circuito que esvazia qualquer sentido da obra.
Afinal, o que resta de toda a tetralogia do Anel do Nibelungo quando se perde a
distinção entre a renúncia de Alberich, na primeira cena da Rheingold, e a renúncia de
Brünnhilde, na cena final da Götterdämmerung? Se nada houvesse além desejo e essa
última cena fosse movida pelas mesmas forças que moveram a primeira, retornaríamos ao ponto inicial muito
mais pobres do que estávamos no começo, pois então sequer se teria algo além de desejo a se
renunciar em troca de desejo, tudo se resumindo ao fastio de um jogo de renúncias de
desejos em troca de desejos, essas renúncias mobilizadas elas mesmas por
desejos: mise en abyme infernal de um relativismo erótico e autorreferente. Se fosse por aí que o
mundo acabasse, sequer faria sentido que viesse a começar.
Ao se extirpar da compreensão da experiência humana
seu eixo vertical, extirpação essa inevitável em qualquer uma das muitas
versões possíveis em que o naturalismo se apresenta, perde-se a capacidade de
descrever satisfatoriamente, mesmo que de forma apenas esquemática, fenômenos
dos mais triviais. Do medo à angústia, do prazer à bem-aventurança, da
irritação ao ódio, do cansaço ao tédio, da afeição ao amor, da estratégia ao
sacrifício, do animal ao humano: para a horizontalidade naturalista, que — no
limite —, por malícia, confusão ou estupidez, aposta na possibilidade da
redução de todo o espaço da realidade a um único plano, tudo o que se tem aqui seriam
meras diferenças de grau, de intensidade ou complexidade.
Para uma tal mentalidade procustiana, uma renúncia
é apenas cálculo, saudades são uma espécie de carência e uma vontade ou decisão não podem
ser nada além de libido. Como resultado, as descrições da experiência humana
resultam em caricaturas monstruosas, imprestavelmente simplistas ou francamente
ridículas. Bela interpretação relinchante.
0 Comentários:
Postar um comentário
Assinar Postar comentários [Atom]
<< Página inicial