Descaminhos: Do piriri literário

quinta-feira, setembro 06, 2012

Do piriri literário

Deve-se prestar mais atenção à miséria gastronômica de nossa época. Desaparecido o jejuador ascético, pululam os jejuadores assépticos. Outrora já se recomendou àquele discrição, ar jovial, rosto e cabelos lavados: a boa aparência deveria ocultar a mortificação, protegê-la da vaidade que amiúde a acompanha. Para esses últimos, contudo, uma bela aparência é o fim mesmo da mortificação: a vaidade não é mais um risco, mas um propósito.
Não falta quem entreveja a nocividade desses hábitos alimentares cada vez mais vulgares e cada vez mais incontornavelmente nossos, mas parece faltar quem os compreenda em seus desdobramentos mais vastos, para além desse ideal de saúde esterilizada que se espraia pelo imaginário do nosso tempo. Esterilização, aliás, que há de ser ouvida em sua ambiguidade nada trivial: o mesmo movimento asséptico que procura furiosamente suprimir por padronização e maquiagem todas as imperfeições das superfícies do mundo torna-o a cada dia menos fecundo.
Se, por um lado, assistimos a um embrutecimento gástrico com a proliferação de alimentos francamente ruins, pré-cozidos, congelados, desidratados, conservados, colorizados e enlatados, que se vendem às custas da velocidade e praticidade com que são deglutidos, que nos desoneram da necessidade de aprender a escolher e preparar as refeições, para não mencionar caçar ou cultivá-las, por outro lado assistimos a um afrescalhamento gástrico que se faz notar na reação da saúde esterilizadora, a qual, contra a oferta de todo tipo de porcaria alimentícia, propõe-nos um cardápio asséptico, saudável porque quase inócuo. E, à parte disso tudo, nas esferas da haute cuisine, cada vez mais se sacrifica frivolamente a nutrição no jogo fastuoso de belas formas e de consistências insípidas. Estômagos embrutecidos para lá, afrescalhados para cá: são sempre diversas as formas de se perder o que importa.
Lembro de uma carta de Sêneca em que digestão e escritura se aproximam. O filósofo aconselha seu discípulo a procurar um equilíbrio entre os esforços que despende na leitura e aqueles que despende na escrita: é pela escrita que se digere o que se leu. É somente ao se escrever que o conhecimento é decomposto, processado e rearticulado a fim de se tornar fonte de energia, de se incorporar de fato à vida daquele que estuda. Caso contrário, chega-se tão somente ao entorpecimento da indigestão.
Essa imagem, que vale para o indivíduo, deve valer também para toda uma sociedade. A literatura é o estômago da cultura. É nela que as demandas e tensões de um tempo são articuladas. É ela que decompõe e processa os conhecimentos, intuições, medos, esperanças, carências de uma época. Digere os elementos e permite que sejam incorporados, que sejam conscientemente pensados, aprimorados, refinados e discutidos. Defendidos ou impugnados. Afinal, não há discussão cultural, política ou filosófica cujos elementos fundamentais não tenham passado necessariamente por uma digestão literária. Não raro com antecedência de anos ou décadas.
É a lição à qual Karl Kraus e Victor Klemperer dedicaram suas vidas: uma literatura subdesenvolvida e uma linguagem imprecisa, frouxamente ambígua, intempestivamente informal, ora hiperbólica, ora eufemística, alusiva, deformada, levam-nos a um paulatino empanzinamento do espírito. Do sabor ao saber e vice-versa: nossa miséria intelectual é uma miséria literária, e nossa miséria literária é análoga à miséria de nossas dietas.
Nenhuma delas tem a ver com escassez de matéria-prima. O que nos falta são estômagos menos imprestáveis.

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