Do piriri literário
Deve-se prestar mais atenção à miséria
gastronômica de nossa época. Desaparecido o jejuador ascético, pululam os jejuadores
assépticos. Outrora já se recomendou àquele discrição, ar jovial, rosto e
cabelos lavados: a boa aparência deveria ocultar a mortificação, protegê-la da vaidade
que amiúde a acompanha. Para esses últimos, contudo, uma bela aparência é o fim
mesmo da mortificação: a vaidade não é mais um risco, mas um propósito.
Não falta quem entreveja a nocividade desses
hábitos alimentares cada vez mais vulgares e cada vez mais incontornavelmente
nossos, mas parece faltar quem os compreenda em seus desdobramentos mais
vastos, para além desse ideal de saúde esterilizada que se espraia pelo
imaginário do nosso tempo. Esterilização, aliás, que há de ser ouvida em sua ambiguidade
nada trivial: o mesmo movimento asséptico que procura furiosamente suprimir por
padronização e maquiagem todas as imperfeições das superfícies do mundo torna-o
a cada dia menos fecundo.
Se, por um lado, assistimos a um embrutecimento
gástrico com a proliferação de alimentos francamente ruins, pré-cozidos,
congelados, desidratados, conservados, colorizados e enlatados, que se vendem
às custas da velocidade e praticidade com que são deglutidos, que nos desoneram
da necessidade de aprender a escolher e preparar as refeições, para não
mencionar caçar ou cultivá-las, por outro lado assistimos a um afrescalhamento
gástrico que se faz notar na reação da saúde esterilizadora, a qual, contra a oferta de todo
tipo de porcaria alimentícia, propõe-nos um cardápio asséptico, saudável porque
quase inócuo. E, à parte disso tudo, nas esferas da haute cuisine, cada vez mais se sacrifica frivolamente a nutrição no
jogo fastuoso de belas formas e de consistências insípidas. Estômagos
embrutecidos para lá, afrescalhados para cá: são sempre diversas as formas de
se perder o que importa.
Lembro de uma carta de Sêneca em que digestão e escritura
se aproximam. O filósofo aconselha seu discípulo a procurar um equilíbrio entre
os esforços que despende na leitura e aqueles que despende na escrita: é pela
escrita que se digere o que se leu. É somente ao se escrever que o conhecimento
é decomposto, processado e rearticulado a fim de se tornar fonte de energia, de
se incorporar de fato à vida daquele que estuda. Caso contrário, chega-se tão
somente ao entorpecimento da indigestão.
Essa imagem, que vale para o indivíduo, deve valer
também para toda uma sociedade. A literatura é o estômago da cultura. É nela
que as demandas e tensões de um tempo são articuladas. É ela que decompõe e
processa os conhecimentos, intuições, medos, esperanças, carências de uma época.
Digere os elementos e permite que sejam incorporados, que sejam conscientemente
pensados, aprimorados, refinados e discutidos. Defendidos ou impugnados. Afinal,
não há discussão cultural, política ou filosófica cujos elementos fundamentais
não tenham passado necessariamente por uma digestão literária. Não raro com antecedência
de anos ou décadas.
É a lição à qual Karl Kraus e Victor Klemperer
dedicaram suas vidas: uma literatura subdesenvolvida e uma linguagem
imprecisa, frouxamente ambígua, intempestivamente informal, ora hiperbólica,
ora eufemística, alusiva, deformada, levam-nos a um paulatino empanzinamento do
espírito. Do sabor ao saber e vice-versa: nossa miséria intelectual é uma miséria
literária, e nossa miséria literária é análoga à miséria de nossas dietas.
Nenhuma delas tem a ver com escassez de matéria-prima.
O que nos falta são estômagos menos imprestáveis.
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