Descaminhos: und wenn das Herz auch bricht...

quarta-feira, dezembro 25, 2013

und wenn das Herz auch bricht...

Gosto muito da bem-humorada passagem de Chesterton em que, a fim de nos obrigar a reconhecer uma dimensão vertical e sobrenatural nos afetos humanos, o autor nos apresenta um gato esfolado vivo como prova cabal de que conceitos naturalistas não são capazes de descrever de modo honestamente satisfatório diversas experiências extraordinárias que temos ordinariamente. Para o bem e para o mal, é claro. A verticalidade é de mão-dupla. O exemplo negativo, contudo, possui popularmente maior apelo retórico. Amor e ódio também poderiam ter sido citados, mas a confusão que gravita ao redor desses termos é tão grande que facilmente se poderia cair no erro de se crer ter refutado o argumento meramente ao se elencarem explicações que, na verdade, deveriam se referir antes à afeição e à repulsa. No extremo oposto à perversidade sobrenatural, a essa ação concreta e efetiva do mal que atravessa nossa existência, a essa dimensão propriamente demoníaca que jamais se deixará reduzir com honestidade a nuances meramente animais de aversão ou agressividade, poderia se pensar no perdão: esse movimento tão surpreendente e inexplicável que se dá na alma e que jamais se reduz à dinâmica justa das desculpas ou à conveniência do oportunismo de uma economia social, biológica ou mesmo psíquica.
Desde Nietzsche e Freud, muito se escreveu sobre a deformação que a culpa  impõe à nossa compreensão. Contudo, não se chama suficientemente a atenção para o fato de que a culpa é um conceito decalcado, negativo, uma cicatriz às avessas, um baixo-relevo engastado em nós, como aquele rastelo da colônia kafkiana tão impressionantemente nos faz lembrar. Não se chama suficientemente a atenção, enfim, para o fato de que a culpa é apenas um dos aspectos do desejo de perdão.
E se é verdade, por um lado, que a quase sempre insuficiente consciência de nossa própria miséria, e das cretinices que dela se seguem, pode nos encher o coração de um arrependimento paralisante, de um remorso que implora expiação, desejo desesperado de sermos perdoados, é também verdade, por outro, que a quase sempre exagerada consciência da injustiça sofrida, com todas as suas indignidades, pode nos carcomer o coração com um rancor que escoa até os últimos restos de sossego, com uma mágoa furiosa que exige uma reparação impossível, desejo desesperado de perdoar. Nosso egoísmo incontornável complica o quadro tornando-o assimétrico: nossa capacidade de perceber, recordar e amaldiçoar é inevitavelmente maior quando se refere às humilhações sofridas do que às praticadas, de modo que a necessidade de nos libertarmos dos rancores se faz ouvir com muito mais urgência do que aquela de nos libertarmos das culpas.
A dialética do perdão descerra um abismo de gratuidades insondáveis no qual jamais ficamos realmente tranquilos. Os que conseguem ser perdoados estão sempre à beira de serem lançados por sua pusilanimidade num ressentimento rancoroso: ser perdoado pode até aliviar a culpa, mas aumenta vertiginosamente a consciência da própria miséria. Os que conseguem perdoar, por sua vez, ficam sempre à iminência de serem mordidos por um senso de justiça que se regenera junto com suas vaidades. Por mesquinho que seja, e é, e somos, o fato é que aquilo por que todo perdão mais anseia é poder ser simplesmente uma desculpa.

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