Descaminhos: julho 2011

segunda-feira, julho 25, 2011

O que se chama imprudência

Em suas Considerações sobre Pecado, Sofrimento, Esperança e o Caminho Verdadeiro, Kafka anota num aforismo: “A partir de um certo ponto não existe mais nenhum retorno. Este ponto há de se alcançar”. Consideração semelhante é a que rabisca Werner Heisenberg em sua autobiografia, quando explica a particularidade da travessia de Colombo que o distingue de qualquer outro navegador: não é meramente por se ter lançado ao mar que ele descobriu a América, mas por deliberadamente ter navegado para além do ponto que permitiria à frota o regresso ao cais. A história das conquistas militares é repleta de episódios semelhantes, sendo a travessia do Rubicão provavelmente o mais célebre exemplo.
Conta-se também que Tariq ibn Ziyad, ao comandar o desembarque das forças mouras em Gibraltar, ordenou que seus navios fossem incendiados, expediente por meio do qual criou a impossibilidade de que suas tropas cogitassem fugir, garantindo assim a conquista da Espanha, até então sob domínio dos bárbaros visigodos. E os espanhóis bem que devem ter aprendido algo com isso, pois o mesmo ardil foi repetido por Hernán Cortés, setecentos anos depois, não deixando alternativa a seus homens senão marcharem sobre o território asteca.
Entre César e Colombo, que assumiram sobre si o peso inevitável da irrevogabilidade de uma decisão que precisou ser tomada, de um lado, e Tariq ibn Ziyad e Hernán Cortés, que forjaram uma irrevogabilidade que garantisse a tomada da decisão que tinham por certa, de outro, desdobra-se o impasse hesitante do homem mediano que sempre procura agir de modo conveniente, comprometendo-se o menos que puder, barganhando pequenas oferendas a todos os deuses de que ouve falar e se certificando, a cada trôpego passo, que pode correr de volta, sem grandes perdas — sem nenhuma perda, se possível —, para um lugar quentinho qualquer. Decerto os extremos são fenômenos distintos. Acolher a responsabilidade de se ter cruzado um ponto de não retorno é, em vários aspectos, diferente de se criar um tal ponto. Entretanto, sempre que nós pensarmos nas grandes conquistas, esse ponto estará lá, assumido ou forjado, bem no meio da narrativa.
Uma voz inoportuna deveria se erguer agora:
— Sempre que nós pensarmos nas grandes derrocadas também.

terça-feira, julho 05, 2011

Um elogio aos pesadelos

Se sonhos forem, de fato, os meiozinhos de que dispomos para uma parcial realização de nossa concupiscência, não é de todo inconcebível que um homem que durante a vigília fosse suficientemente atormentado por seus desejos e que, em seu repouso, se encontrasse enredado pelas variadas e malfadadas tentativas de realização do mesmo viesse a sonhar, numa noite gloriosa, que não mais fosse capaz de sonhar. Para ele, o pesadelo de não mais sonhar seria o alívio máximo, a realização suprema de sua força vital, e se confundiria mesmo com um grau promissor de bem-aventurança. Despertaria, então, com o alívio que só pode ser experimentado e compreendido por aqueles que, ao despertarem de terríveis pesadelos, percebem-se na segurança da banalidade de suas camas.
Não se acentua suficientemente a ambigüidade do fato de que o despertar dos pesadelos é, não obstante os suores, a dispnéia e a taquicardia características, um momento muito mais apreciável do que o despertar dos mais maravilhosos sonhos, que em curtíssimo prazo não trazem senão a lembrança da frustração dos sonhadores. E, se Calderón de la Barca graceja que a la vida es sueño, Pascal lembra que ela é um sonho un peu moins inconstant. É dessa menor inconstância que vem o segredo de seu horror. Note-se que não é num pesadelo, mas sim em sua própria vida, que Gregor Samsa descobre o caráter pestilento de sua natureza.
Se sonhos se prestam a nos forçar a lembrar que a realizaçãozinha parcial de nossos desejos se funda sobre uma irrealização fundamental, os pesadelos possuem a saudável missão de, ainda que apenas pelos poucos instantes do despertar, fazer-nos esquecer do mal endêmico que há de nos acompanhar quando nos levantarmos da cama: um mal invariavelmente pior do que o pior dos pesadelos, posto que se traduz numa ânsia por novos sonhos e é à prova de qualquer despertador.