Descaminhos: junho 2006

quarta-feira, junho 14, 2006

Da Transparência

Não é beleza que falta à assim chamada arte popular. Tampouco sensibilidade, ternura, empatia — quaisquer que sejam as acepções mais ou menos imediatas por que esses termos sejam compreendidos. Também não se trata de recusar a esses objetos o poder de evocar deleitação estética, algum grau de satisfação ou agitação espiritual. Trata-se do excesso de transparência, e da conseqüente falta de promessa.
É como aquela moça que entra no café em que estamos, suas formas são lindas, seus traços delicados. Os cabelos podem escorrer macios pelos ombros, o caminhar erótico sobre os saltos, um vestido bonito revela as pernas macias, o decote atrai o olhar, talvez tenha aquele perfume de água e sabonete e, com tudo isso, talvez até nos arranque um sorriso e torça-nos o pescoço com algum resquício de discrição, mas não nos fará levantar e ousar um diálogo. Pois seus olhos são transparentes, sua alma é diáfana. Nós a fitamos e a atravessamos sem qualquer refração. E como que sem querer, com o peso da inevitabilidade das desgraças, nós sabemos, com ou sem consciência disso, de que já conhecemos o lugar de onde viriam todos os seus pensamentos e palavras. Sabemos já demais para que alguma promessa possa ser feita. Ela pode nos sorrir, e com isso nos trazer os vapores de uma ébria alegria, um agitar no corpo e no espírito, mas seu sorriso é transparente e nada promete: ele nasce e morre ali, na superfície dos seus lábios.

segunda-feira, junho 12, 2006

To see a World in a Grain of Sand...

A miséria também pode ser descrita por essa confusão que insiste em pensar eternidade em termos de tempo, como uma duração infinita, série temporal maximamente extensa, cadeia de instantes que se devoram uns aos outros ridicularizando como vão tudo que se esboce em algum ponto da linha infinita. Essa duração infinita depende de um infinito que a sustente e no qual o finito que somos possa, de alguma forma, tomar parte. Decerto não um mero infinito numérico, que se confundiria já com a própria ilimitada série de instantes que está a reivindicar um suporte, mas a necessidade que emana de um infinito atual que desse à série de instantes famintos um suporte e fundamento. Os deuses já foram esse suporte infinito e nossa convivência com eles era a chave da comunhão com a experiência do eterno. O eterno, contudo, nunca foi o abarcar dessa duração infinita, mas apenas a participação naquilo que era seu fundamento.
Quando a chave é perdida o resultado é claro: a vanidade invade o mundo como um fungo que vai minando o sentido de toda existência, o homem se torna – com suas idéias, afetos, e ações – uma “besta sadia”, um “cadáver adiado que procria”, pois o infinito numérico dessa duração obviamente não pode ser agarrado por uma existência finita, e nada do que acontecesse pelo meio do caminho teria ainda algum sentido. Tudo se esvai e se nega; uma certa ironia se salva enquanto uma nebulosa reivindicação de sentido ainda bruxuleia num recanto da alma humana, mas mesmo essa ironia se dissolve tão logo se volte para si e aquela reivindicação seja de vez silenciada. Poucos são os passos que levam do barroco ao nihilismo. E ainda assim se continua a pensar eternidade como tempo infinito em vez de ligá-la à necessidade.
O que importa, o que sempre importou, é a experiência da eternidade - não como a série cronológica infinita e fugaz de instantes que se devoram uns aos outros, principalmente quando desse Cronos nenhum Zeus é prometido - mas sim como a experiência da necessidade radical, que rasga essa série infinita e por nós inapreensível e se desloca para uma outra esfera, onde tempo não é mais questão.
Duratio est indefinita existendi continuatio, per aeternitatem intelligo ipsam existentiam, quatenus ex sola rei aeternae definitione necessario sequi concipitur, tempo como mera medida da duração, eternidade como identidade entre essência e existência: foram as preciosas lições de Spinoza que entraram para os subsolos de uma Modernidade revolucionária que seguiu um caminho bem diferente, apostando no tempo como realizador da natureza e escada da redenção.

quinta-feira, junho 01, 2006

Vanitas vanitatum

Matreiro admoestou o demônio: “Bedenk es wohl, wir werden’s nicht vergessen!”, e no entando os homens se esquecem, não obstante o pacto corra às mil maravilhas. ‘Tomai cuidado, pensai bem!, nós não nos esqueceremos!’, avisam as forças infernais nos instantes que antecedem o pacto. Avisam com a franqueza única dos demônios, de cujo charme faz parte enganar dizendo apenas verdades: ‘pensai bem, porque diabo tem memória!’, o que equivale a dizer: ‘vós vos esquecereis, mas isso não importa xongas!’.
O esquecimento daquilo que perdemos acompanha a ilusão de que tudo podemos ter — senão de fato, pelo menos de direito. Nosso tempo oferece a convicção de que é possível a existência sem cessões. E a arrogância dos possessos desmemoriados se mostra na satisfação com que desfrutam o que lhes resta, convencidos de que barganharam a própria alma, de que enganaram os demônios, de que a vida lhes saiu uma pechincha, simplesmente porque não conseguem se lembrar do que pagaram.
Por trás de toda arrogância se esconde a baixa auto-estima: somente a certeza de que a sua alma não valia muitos trocados é que permite que o demente acredite que não a vendeu.