Descaminhos: março 2013

sábado, março 09, 2013

Notas sobre um cartesianismo popular

Até onde sei, das diferentes versões da história de Barba Azul, seu sombrio castelo cheio de portas fechadas e sua nova esposa, nenhuma delas assume a possibilidade de que, dessa vez, o soturno nobre pudesse realmente se encontrar apaixonado pela jovem que desposava. Não é totalmente claro se ele já o estivera alguma vez outrora, se o estivera pelas esposas que agora assombravam o castelo como cadáveres, e em que medida o teria estado. Os fatos, contudo, tornam essa hipótese pouco promissora.

Embora seja concebível que Barba Azul tivesse sido genuinamente apaixonado por cada uma das esposas que, por esses caminhos esquisitos e tão frequentemente sórdidos das paixões, viera a assassinar, é sem dúvida mais provável, a se levar em conta o destino que as pobres moças tiveram, que elas nunca tivessem representado para ele mais do que o ensejo de vazão de suas pulsões mais violentas, ou meramente de seu tédio desmedido. Talvez fossem um simples ponto de repouso na beleza, fuga desesperada de sua proverbial e provavelmente insuportável feiura. Nós simplesmente não temos como sabê-lo com certeza, mas às vezes, e ousemos dizer que em geral, a aparência mais óbvia tem mesmo um bocado de verdade.
Contudo, creio, há indícios de que dessa vez poderia ter sido realmente diferente. Enquanto, na versão de Perrault, ao viajar, o nobre entrega à nova esposa todas as suas chaves, incluindo aquela do quarto que jamais deveria ser aberto, na ópera de Béla Bartók ele lhe implora que ela desista das portas, que confie nele e o ame, mas não se recusa a abri-las quando a jovem insiste.
É fácil encaixar a esposa de Barba Azul no tipo precedido por Eva ou Pandora e pensarmos nela como mais um dos inúmeros símbolos dos perigos de uma curiosidade desorientada e dos infortúnios que ela invariavelmente acarreta. Contudo, prefiro recordar que a esposa não arrombou porta alguma. As chaves lhe tinham sido dadas. Ou, como vemos na versão operística, Barba Azul não se recusou a abrir as portas, ainda que implorasse à jovem esposa que ela desistisse. Assim, não parece se tratar de mera curiosidade desgovernada, mas do jogo de infantil perversidade de uma insegurança que impõe provações mútuas na tentativa de encontrar as garantias e os limites da possibilidade de confiança.
Creio que, em sua insegurança pueril, a jovem esposa estivesse mais inquieta com a possibilidade de que a chave do quarto proibido não funcionasse do que com o que realmente pudesse estar por trás da porta. Afinal, o medo de que nos seja vetado o acesso a certas regiões da alma do objeto amado pode ser, e frequentemente o é, muito maior e mais fundamentado do que um medo concreto do que pudéssemos realmente encontrar em tais regiões. Nossa capacidade de perdoar uma pilha de cadáveres, afinal, pode se mostrar surpreendentemente maior do que a lógica e o bom senso achariam razoável.
Ele, por sua vez, em sua insegurança de velho, de feio; em sua insegurança de rico e poderoso; em sua insegurança de assassino culpado; em sua insegurança de homem diante da mulher amada, que tem olhos bastantes para vê-lo velho, feio, rico e apaixonado, e ouvidos bastantes para não ter passado imune aos rumores sobre as ex-esposas misteriosamente desaparecidas; creio que seja legítimo acreditarmos que o velho Barba Azul, em sua velada insegurança, enfim, ao entregar suas chaves ao poder da jovem, estivesse desesperadamente testando não a sua obediência, como ordinariamente se crê, mas sua confiança.
O que um e outro anseiam é ser amados sem reservas, mas um amor incondicional que não negasse qualquer chave seria o mesmo que não as pediria jamais e, uma vez que as tivesse recebido, não buscaria testá-las. Aqui, como em tantos outros inumeráveis lugares, é essa necessidade furiosa de certezas que esmigalha o que poderia haver de verdadeiro, belo e bom.
Todos sabemos que há portas que não podem ser abertas, portas cuja abertura não pode senão implicar nossa aniquilação; ao mesmo tempo, após a ultrapassagem de certas esferas do enlaçamento amoroso, não queremos — e, em certo sentido, não temos sequer o direito — de mantê-las fechadas. Talvez essa seja, afinal, uma das mais bem sucedidas imagens do precário e quase impossível equilíbrio da confiança de que os amantes necessitam: a solene e resoluta entrega ao outro das chaves de nossa própria destruição, com a confiança — nunca completamente fundamentada — de que não serão usadas contra nós.