Descaminhos: junho 2010

quinta-feira, junho 24, 2010

ein großes Rätsel

Num pequenino texto redigido em meio à Primeira Guerra Mundial, aqueles anos que subitamente escancararam a implacável transitoriedade a que estava sujeito tudo o que se julgava digno de importância, Freud recorda certo diálogo travado ao longo de uma caminhada de verão em companhia de um jovem poeta. Este se deixava abater diante da paisagem que, não obstante a majestosa beleza, era incapaz de lhe fazer esquecer de seu futuro e inexorável desaparecimento: tudo de belo que a natureza criasse, tudo de elevado que os homens construíssem, os mais nobres sentimentos e valores, as mais doces esperanças, tudo aquilo pelo que se chegasse em algum momento a acreditar valer a pena viver, morrer e matar, tudo isso estaria de antemão, a despeito de sua altivez, inevitavelmente condenado a um desaparecimento gratuito, banal e indiferente a quaisquer desejos outrora alimentados. O psicanalista se recusa a tomar parte na melancolia do poeta. Para sua obstinada miopia monista, a exigência de imortalidade é tão somente um produto de nosso narcisismo e não tem qualquer direito de reivindicar valor de realidade. Ademais, não haveria motivos, insistiu Freud, para que a efemeridade do belo implicasse sua desvalorização.

Teria ele conseguido realmente acreditar no que dizia? Não sentiu ruborizar as bochechas quando logo em seguida confessou que o luto seria, afinal, ein großes Rätsel, um grande enigma? Diante da perda do objeto amado essa “certa medida de capacidade amorosa, chamada libido” se encontraria novamente liberada e procuraria por objetos substitutos em que ancorar, ou retornaria provisoriamente ao eu. “Contudo,” suspira Freud, “nós não entendemos o porquê de esse desprendimento da libido de seus objetos dever ser ein so schmerzhafter Vorgang, um processo tão doloroso, e até agora não somos capazes de explicá-lo por nenhuma hipótese. Observamos apenas que a libido se agarra a seus objetos e não quer renunciar àqueles objetos perdidos mesmo quando dispõe de substitutos. Isso, portanto, é o luto”.

Uma ova! Como assim “das also ist die Trauer”?! Não percebeu que sua definição não era nada senão um atestado de incompreensão? Que sua sofisticada economia de pulsões não explicava, no fim das contas, nada do que realmente importava explicar? Como é desconcertante que não tenha ocorrido a esse homem tão engenhoso colocar sinceramente em xeque seu furioso ímpeto naturalista, mesmo quando sua honestidade o levava a declarar não conseguir compreender o que na linha acima acreditava estar explicando!

A pergunta que o desconcerta, a pergunta diante da qual essa mente sempre tão prodigiosa em hipóteses se cala, é por que diabos, no fim das contas, dói. Nem Freud explicou. E dói! Ainda que haja objetos substitutos disponíveis, que sejam mesmo inumeráveis!, ainda que de modo algum a sobrevivência ou sequer a integridade do sujeito corra riscos diante da perda, ainda que se esteja perfeitamente ciente de tudo isso e que se esteja pronto a reconhecer uma miríade de imperfeições no objeto amado, ainda que se enxergue a própria infelicidade nesse amor, um punhado de insalubridades até, ainda que, enfim, seja o caso de se compreender que a dissolução do vínculo é, sob diversos aspectos, algo positivo, ainda assim mortos hão de ser chorados, deixando ou não saudade. Se a banal transitoriedade do belo é a constatação que bastava para levar o jovem poeta à desesperança, a outra face dessa moeda é a fossa do luto que se instala até mesmo na perda do que há de mais miserável.

Estar na merda é ter saudades da infelicidade.