Descaminhos: julho 2012

quinta-feira, julho 26, 2012

Da eutanásia radical

Lembro de um conto de Jenő Heltai em que um médico é chamado para atender às pressas a um moribundo, o qual logo se descobre se tratar da Morte em pessoa. Ao se deparar com seu paciente, um velhinho mirrado e indefeso sobre o leito, o médico não consegue evitar a tentação de matar a própria Morte e libertar o mundo de seu domínio. Confusão típica em que nossa natureza limitada sói se enredar quando se aproxima de um universal com cálculos e economias particulares: para aquele cuja missão ordinária é salvar vidas, matar a Morte pode parecer um grande negócio, uma artimanha, um macete para, como que por atalho, saltar ao grau derradeiro de excelência na execução de seus serviços. Tudo se passa como se entre salvar vidas e salvar a vida em geral não houvesse senão uma diferença de grau, uma picuinha gramatical.
Evidentemente, as boas intenções do médico malogram, sucumbem à própria vaidade. Após ter cuidado para que a Morte morresse, aquele velhinho caquético e aparentemente inofensivo que, a experiência nos ensinaria diariamente, a despeito de seu estado já fazia colheitas bastantes pelo mundo, o atrapalhado médico descobre, agora já tarde demais, que o filho da velha Morte, um brutamontes monumental e desavergonhadamente sanguinário, está pronto para assumir o posto do defunto pai.
Fica a lição conservadora de que são imperscrutáveis os males maiores que um mal menor está a afastar; a lição metafísica da descontinuidade entre os particulares e o absoluto; a lição teológica de que combater o Mal no mundo não pode ser confundido com a tentação orgulhosa de com as próprias mãos e méritos eliminar o Mal do mundo; e a prosaica lição da vitória do bom senso a nos lembrar que assassinar velhinhos agonizantes não há de ser uma boa ideia, afinal.

terça-feira, julho 03, 2012

grandes gestos

Já há tempos insisto que um dos maiores sintomas da miséria de nossa época é estarmos tão prontos a reconhecer, admirar e elogiar o que seria, sob critérios rigorosos, simplesmente o necessário, o razoável: não raro, tão somente o mínimo. É chegado há muito o tempo em que usar corretamente as vírgulas basta para que digam que você escreve bem.
Ainda assim, não foi sem um resquício de horror que recentemente observei alguns apelos espalhados pelo metrô de São Paulo que, na minha ainda tão inocente fantasia, só fariam sentido sob a chave da ironia. "Faça um grande gesto", exorta-se: antes de embarcar, permita que os outros desembarquem; mantenha-se à direita na escada rolante. Sombrios os tempos em que princípios de estrito bom senso são tomados por um "grande gesto". Ao que tudo indica, em alguns meses teremos por lá um "faça um grande gesto: não tente entrar ou sair do vagão antes de a porta estar aberta".
Passado um século sob a mitologia darwinista, falta muito, muito pouco para que a mera sobrevivência, em seus aspectos mais elementares, mais banais, seja elevada às excelsas alturas da glória do gênio humano e celebrada em hexâmetros dactílicos como o supremo gesto de heroísmo. Na verdade, falta apenas quem ainda ligue para a escansão.