Descaminhos: Dos "leitores criativos"

segunda-feira, julho 25, 2005

Dos "leitores criativos"

Não acrediteis na velha conversa de "a interpretação é livre" que escritores deixam escapar por entre dois sorrisos amarelos, diante de uma tentativa exegética por parte de um leitor.
Naturalmente um texto permite possibilidades de leitura, níveis de acesso, graus de abordagem. Estejamos certos de que poucas coisas são mais agradáveis a um autor do que ver seu texto sendo lido para além do que ele próprio o tinha concebido. A gente sempre se enternece com esse tipo de coisa, que não se trata de uma "interpretação livre", mas de uma leitura inteligente que só faz reafirmar a qualidade do que foi escrito; em outras palavras, uma leitura inesperada faz elogio ao nosso texto.
Não vos enganeis, porém: esse papo de "a interpretação é livre" é eufemismo que os mais delicados utilizam para não chamarem o leitor de estúpido.
Uma coisa, contudo, é quase sempre certa: cada autor tem o leitor que merece. Dificilmente encontraremos uma "interpretação livre" de Dostoievski, Kafka ou Machado. Encontramos, é claro, um sem-fim de asneiras e interpretações superficiais que se cristalizaram com o tempo e são repetidas ad aeternum. Não será em qualquer esquina pseudo-intelectualizada que haverá alguém com a "nova verdade" d'Os Demônios. Nesse caso, os maus-leitores se contentam em repetir besteiras, não procuram inventá-las.
Por outro lado, festejável será o momento em que nos depararemos com um comentário lúcido sobre Joyce, Eliot, Pound, só para citar alguns mais badalados. A produção estética do século XX tomou um caminho tão hermetizado que podemos falar em uma dimensão quase mítica. O Eliade já chamara, há algumas décadas, a atenção para a semelhança entre um grupo de joyceanos e neófitos de uma seita secreta qualquer. Encontram-se para lerem textos do autor sacramentado, vibram ao identificar uma relação matemática na redação, ou com a etimologia de um neologismo. A própria leitura se aproxima de um rito iniciático. A função dessas obras acaba por se reduzir ao ritual que propiciam.
De tudo fica ao menos uma lembrança a autores e leitores: o papel é bonachão. Se, por um lado, aceitará de bom grado qualquer idiotice que nele desejarmos escrever, por outro nada poderá para se proteger da originalidade de leitores sanguinários.

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