Descaminhos: Mundo de vidro

domingo, julho 24, 2005

Mundo de vidro

O barulho não é oposto ao silêncio, como se afirmaria em um primeiro descuidado momento. Se com verdade declaramos que nossa época é a mais barulhenta de todas, afirmaríamos com igual justeza ser o nosso tempo o mais silencioso da história.
O aparente paradoxo é resolvido se compreendermos que essencialmente o barulho é constituído pelo mesmo princípio que o silêncio, apenas organizado de forma diferente: esse princípio é o vazio. Tanto o silêncio quanto o barulho são duas maneiras diferentes de se dispor um efetivo vazio: aqui ele é agitado, lá é abandonado à imobilidade, mas trata-se do mesmo vazio. O que nos incomoda tanto em um quanto em outro caso é o convite imperioso que recebemos a preencher essa falta. Basta nos acharmos cercados de silêncio, ou de muito barulho, e nosso pensamento divaga, corre ligeiro, desesperado de tudo preencher de sentido.
Benjamin já escrevia, no começo dos anos trinta, sobre os soldados que voltaram das trincheiras em silêncio. Outrora o regresso da guerra os inundava de experiências a serem compartilhadas, ditas, narradas; ali o absurdo esvaziara de tal forma o mundo de sentido que as narrativas não eram mais viáveis, a magia que brotava de cada palavra perecera, e o que sobrara foram as ruínas de uma linguagem desabitada, em que as palavras estavam mortas e imobilizadas. A falta de projetos e de utopias tornara o mundo vazio e criara um tempo em que as palavras seriam apenas barulhos. Empobrecida ao limite, nossa história se tornou uma tabula rasa.
Ah, Scheerbart! ah, mundo de vidro!

1 Comentários:

Anonymous Anônimo disse...

Para ouvir o silêncio:
"Vozes, vozes. Ouve, coração meu, como só
ouviam os santos, quando um chamado intenso
os elevava do chão; eles, porém, permaneciam ajoelhados,
impossíveis criaturas, e nem prestavam atenção:
era assim que ouviam. Não que possas suportar a voz
de Deus, longe disto. Ouve, porém, a voz do vento,
a mensagem constante que se forma do silêncio.
Sentes agora o murmúrio daqueles jovens mortos.
Onde quer que entraste, nas igrejas de Roma
ou Nápoles, não te tocava, sereno, o seu destino?
Ou aquela inscrição, outro dia, na placa em Santa
Maria Formosa, não te impressionava ela, sublime?
O que queres de mim? Que eu remova, suavemente, as aparências de injustiça, que perturbam, às vezes,
o movimento puro de suas almas."

R.M.Rilke. Trecho da primeira das "Elegias de Duíno" (1912-1922)

24 de jul. de 2005, 15:50:00  

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