Descaminhos: Dos demônios e seus sorrisos

quinta-feira, setembro 15, 2005

Dos demônios e seus sorrisos

O maior perigo dos demônios, já nos ensinava o mago do sertão, é que basta descobrirmos que eles não existem para que eles tomem conta de tudo. E tomam mesmo, com muita classe e sutileza, porque balbúrdia é coisa de endemoniados e não dos demônios. Ciciando tudo pelo que os espíritos baixos anseiam ouvir, inflam o peito humano de arrogância e pedem ação: demônio gosta é de muito trabalho.
Die Philosophen haben die Welt nur verschieden interpretiert, es kommt aber darauf an, sie zu verändern, murmurou-se certa vez. O murmúrio fez-se grito, o grito fez-se ação, os demônios sorriram. Quem, senão os espertos e inexistentes demônios que tomam conta de tudo, poderia esperar dos filósofos algo diferente da contemplação teorética que, de um jeito ou de outro, fundava a essência do que tinham a fazer? O apelo retomava, de modo quase explícito para quem tem olhos um tantinho atentos, a vetusta separação entre teoria e prática, essência e aparência, forma e matéria. A retomada, contudo, nunca teve outra função senão o sorriso dos demônios.
Largai as interpretações do mundo, o verbo da vez é verändern. Ingenuidade ou parvoíce: pelo menos uma das duas é necessária para traduzi-lo por transformar. O que há de mais essencial na expressão se perde, escapa por entre os dedos frouxos da ignorância quando perde de vista o mais importante de tudo: o outro. Muito mais do que uma transformação, uma Veränderung é uma alteração.
Alterar, alterar o mundo!, gritam os endemoniados.
As alterações não são, rigorosamente falando, meros acidentes de uma substância, são já substituições. A outrificação do outro o leva às suas extremas possibilidades, como que virando-o pelo seu avesso. Alterar uma substância, que é em si alteridade, é conduzi-la à máxima radicalidade de sua estrutura até dissolvê-la sobre si mesma dando lugar a uma nova. Os demônios, todavia, não nos pedem que alteremos substâncias: alterar o mundo, o mundo!
A questão, entretanto, é bem mais grave do que uma má tradução pode dar a entender a princípio. A questão, toda a questão, é que não há o outro do mundo, uma vez que não pode haver o outro do que é a condição mesma da possibilidade de alteridade. Alterar o mundo não passa de um eufemismo barato para aniquilá-lo.
É por isso que sorriem os demônios.

1 Comentários:

Blogger Avery Veríssimo disse...

Descaminhado?

19 de set. de 2005, 11:53:00  

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